SóProvas


ID
1903489
Banca
FUNCAB
Órgão
SEGEP-MA
Ano
2016
Provas
Disciplina
Português
Assuntos

                                 A Repartição dos Pães

      Era sábado e estávamos convidados para o almoço de obrigação. Mas cada um de nós gostava demais de sábado para gastá-lo com quem não queríamos. Cada um fora alguma vez feliz e ficara com a marca do desejo. Eu, eu queria tudo. E nós ali presos, como se nosso trem tivesse descarrilado e fôssemos obrigados a pousar entre estranhos. Ninguém ali me queria, eu não queria a ninguém. Quanto a meu sábado - que fora da janela se balançava em acácias e sombras - eu preferia, a gastá-lo mal, fechá-la na mão dura, onde eu o amarfanhava como a um lenço. À espera do almoço, bebíamos sem prazer, à saúde do ressentimento: amanhã já seria domingo. Não é com você que eu quero, dizia nosso olhar sem umidade, e soprávamos devagar a fumaça do cigarro seco. A avareza de não repartir o sábado, ia pouco a pouco roendo e avançando como ferrugem, até que qualquer alegria seria um insulto à alegria maior.

      Só a dona da casa não parecia economizar o sábado para usá-lo numa quinta de noite. Ela, no entanto, cujo coração já conhecera outros sábados. Como pudera esquecer que se quer mais e mais? Não se impacientava sequer com o grupo heterogêneo, sonhador e resignado que na sua casa só esperava como pela hora do primeiro trem partir, qualquer trem - menos ficar naquela estação vazia, menos ter que refrear o cavalo que correria de coração batendo para outros, outros cavalos.

      Passamos afinal à sala para um almoço que não tinha a bênção da fome. E foi quando surpreendidos deparamos com a mesa. Não podia ser para nós...

      Era uma mesa para homens de boa-vontade. Quem seria o conviva realmente esperado e que não viera? Mas éramos nós mesmos. Então aquela mulher dava o melhor não importava a quem? E lavava contente os pés do primeiro estrangeiro. Constrangidos, olhávamos.

      A mesa fora coberta por uma solene abundância. Sobre a toalha branca amontoavam-se espigas de trigo. E maçãs vermelhas, enormes cenouras amarelas [...]. Os tomates eram redondos para ninguém: para o ar, para o redondo ar. Sábado era de quem viesse. E a laranja adoçaria a língua de quem primeiro chegasse.

      Junto do prato de cada mal-convidado, a mulher que lavava pés de estranhos pusera - mesmo sem nos eleger, mesmo sem nos amar - um ramo de trigo ou um cacho de rabanetes ardentes ou uma talhada vermelha de melancia com seus alegres caroços. Tudo cortado pela acidez espanhola que se adivinhava nos limões verdes. Nas bilhas estava o leite, como se tivesse atravessado com as cabras o deserto dos penhascos. Vinho, quase negro de tão pisado, estremecia em vasilhas de barro. Tudo diante de nós. Tudo limpo do retorcido desejo humano. Tudo como é, não como quiséramos. Só existindo, e todo. Assim como existe um campo. Assim como as montanhas. Assim como homens e mulheres, e não nós, os ávidos. Assim como um sábado. Assim como apenas existe. Existe.

      Em nome de nada, era hora de comer. Em nome de ninguém, era bom. Sem nenhum sonho. E nós pouco a pouco a par do dia, pouco a pouco anonimizados, crescendo, maiores, à altura da vida possível. Então, como fidalgos camponeses, aceitamos a mesa.

      Não havia holocausto: aquilo tudo queria tanto ser comido quanto nós queríamos comê-lo. Nada guardando para o dia seguinte, ali mesmo ofereci o que eu sentia àquilo que me fazia sentir. Era um viver que eu não pagara de antemão com o sofrimento da espera, fome que nasce quando a boca já está perto da comida. Porque agora estávamos com fome, fome inteira que abrigava o todo e as migalhas. [...]

      E não quero formar a vida porque a existência já existe. Existe como um chão onde nós todos avançamos. Sem uma palavra de amor. Sem uma palavra. Mas teu prazer entende o meu. Nós somos fortes e nós comemos.

      Pão é amor entre estranhos.

         LISPECTOR, Clarice. A legião estrangeira. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

Do ponto de vista da norma culta, a única substituição/mudança que poderia ser feita, sem alteração de valor semântico e linguístico, seria:

Alternativas
Comentários
  • Quem prefere , prefere isso a isto!

  • Gostaria de entender as demais alternativas. Por que estão erradas?

  • Maria Soares, tirando sua dúvida em relação às demais questões.

     

     a) ali mesmo ofereci o que eu sentia àquilo que me fazia sentir.” = ali mesmo ofereci o que eu sentia àquilo que fazia-me sentir.

     

    Aqui existe o uso da próclise. A próclise antecede pronomes indefinidos, relativos, interrogativos, advérbios que não peçam pausa, conjunções subordinativas e quando há gerúndio precedido pela preposição EM. Neste caso o "que" é um pronome relativo, por isso não pode ser usado a ênclise, pois pronome relativo atrai a próclise.

     

    b) "Tudo cortado pela acidez espanhola que se adivinhava nos limões verdes.” = Tudo cortado pela acidez espanhola que adivinhava-se nos

    limões verdes.

     

    Temos outro caso de pronome relativo. Por isso deve ser usada a próclise, pois o pronome que retoma a palavra acidez espanhola.

     

    c) "Mas cada um de nós gostava demais de sábado para gastá-lo com quem não queríamos.” = Mas cada um de nós gostava demais de sábado para o gastar com que não queríamos.  

    Neste caso temos a próclise facultativa quando usada com conjunções coordenativas. Alternativa correta

     

     d) "Só a dona casa não parecia economizar o sábado para usá-lo numa quinta de noite.” = Só a dona da casa não parecia economizar o sábado para usar-lhe numa quinta de noite. o "lhe" é usado apenas para objeto indireto. 

     

    e) "Quanto a meu sábado - que fora da janela se balançava em acácias e sombras - eu preferia, a gastá-lo mal.” = Quanto a meu sábado - que fora da janela se balançava em acácias e sombras - eu preferia, do que gastá-lo mal.

     

    Na alternativa "e" temos um caso de regência. o verbo preferir é transitivo direto e indireto com a preposição A. Ou seja, necessita de um objeto direto e um indireto. Quem prefere, prefere isso a aquilo. A opção dada pela alternativa é o modo coloquial.

    Ex: Prefiro a natação ao futebol.

     

    Fonte: Português para concursos. Renato Aquino

     

    Espero ter ajudado. Bons estudos!

     

  • Muito obrigada Michelle.

  • Guerreiros, na Letra E a vírgula separa verbo complemento ? se for isso mesmo esse seria um dos erros.

  • C) Para que seja preservada a eufonia, não se RECOMENDA a próclise com os pronomes diretos- O, A - antes de verbos em suas formas nominais: infinitivo, gerúndio e particípio.

  • Acredito que a alternativa C está correta por se enquadrar em um Caso Especial, ou seja, com verbos no infinitivo, precedido de preposição ou palavras negativas, usa-se próclise ou ênclise.

    Ex.: Estou aqui para te servir.

    Ex.: Estou aqui para servir-te.

    Fonte: Livro Português Esquematizado, Agnaldo Martino, 3º edição, pág. 245

  • GABARITO C

    Letras A e B > o "que" é fator de próclise (atração)

    Letra C > verbo auxiliar + infinitivo admite próclise e ênclise

    Letra D > verbo terminado em R, só admite pronome LO

    Letra E > "eu preferia, do que..." é linguagem coloquial

    Bora quebrar a INCAB/FUNCAB na PMSC?

  • Desafio aceito, Juliana Paula Possamai kkk. Rumo ao CFSd. PMSC!

    Em relação à "D", o verbo "usar" é VTD, portanto, não cabe o uso do "lhe".

  • "Quanto a meu sábado - que fora da janela se balançava em acácias e sombras - eu preferia, a gastá-lo mal.” Essa questão possui um aposto? Porque uma professora falou que era vocativo e sinceramente não consigo ver onde tem vocativo nessa frase