Existem grandes nacos da vida adulta sobre os quais ninguém fala em discursos de formatura. Um desses nacos envolve
tédio, rotina e frustração mesquinha.
Vou dar um exemplo prosaico imaginando um dia qualquer do futuro. Você acordou de manhã, foi para seu prestigiado
emprego, suou a camisa por nove ou dez horas e, ao final do dia, está cansado, estressado, e tudo que deseja é chegar em casa,
comer um bom prato de comida, talvez relaxar por umas horas, e depois ir para cama, porque terá de acordar cedo e fazer tudo de
novo. Mas aí lembra que não tem comida na geladeira. Você não teve tempo de fazer compras naquela semana, e agora precisa
entrar no carro e ir ao supermercado. Nesse final de dia, o trânsito está uma lástima.
Quando você finalmente chega lá, o supermercado está lotado, horrivelmente iluminado com lâmpadas fluorescentes e
impregnado de uma música ambiente de matar. É o último lugar do mundo onde você gostaria de estar, mas não dá para entrar e
sair rapidinho: é preciso percorrer todos aqueles corredores superiluminados para encontrar o que procura, e manobrar seu carrinho
de compras de rodinhas emperradas entre todas aquelas outras pessoas cansadas e apressadas com seus próprios carrinhos de
compras. E, claro, há também aqueles idosos que não saem da frente, e as pessoas desnorteadas, e os adolescentes hiperativos
que bloqueiam o corredor, e você tem que ranger os dentes, tentar ser educado, e pedir licença para que o deixem passar. Por fim,
com todos os suprimentos no carrinho, percebe que, como não há caixas suficientes funcionando, a fila é imensa, o que é absurdo
e irritante, mas você não pode descarregar toda a fúria na pobre da caixa que está à beira de um ataque de nervos.
De qualquer modo, você acaba chegando à caixa, paga por sua comida e espera até que o cheque ou o cartão seja
autenticado pela máquina, e depois ouve um “boa noite, volte sempre” numa voz que tem o som absoluto da morte. Na volta para
casa, o trânsito está lento, pesado etc. e tal.
É num momento corriqueiro e desprezível como esse que emerge a questão fundamental da escolha. O engarrafamento, os
corredores lotados e as longas filas no supermercado me dão tempo de pensar. Se eu não tomar uma decisão consciente sobre
como pensar a situação, ficarei irritado cada vez que for comprar comida, porque minha configuração padrão me leva a pensar que
situações assim dizem respeito a mim, à minha fome, minha fadiga, meu desejo de chegar logo em casa. Parecerá sempre que as
outras pessoas não passam de estorvos. E quem são elas, aliás? Quão repulsiva é a maioria, quão bovinas e inexpressivas e
desumanas parecem ser as da fila da caixa, quão enervantes e rudes as que falam alto nos celulares.
Também posso passar o tempo no congestionamento zangado e indignado com todas essas vans e utilitários e caminhões
enormes e estúpidos, bloqueando as pistas, queimando seus imensos tanques de gasolina, egoístas e perdulários. Posso me
aborrecer com os adesivos patrióticos ou religiosos, que sempre parecem estar nos automóveis mais potentes, dirigidos pelos
motoristas mais feios, desatenciosos e agressivos, que costumam falar no celular enquanto fecham os outros, só para avançar uns
20 metros idiotas no engarrafamento. Ou posso me deter sobre como os filhos dos nossos filhos nos desprezarão por
desperdiçarmos todo o combustível do futuro, e provavelmente estragarmos o clima, e quão mal-acostumados e estúpidos e
repugnantes todos nós somos, e como tudo isso é simplesmente pavoroso etc. e tal.
Se opto conscientemente por seguir essa linha de pensamento, ótimo, muitos de nós somos assim – só que pensar dessa
maneira tende a ser tão automático que sequer precisa ser uma opção. Ela deriva da minha configuração padrão.
Mas existem outras formas de pensar. Posso, por exemplo, me forçar a aceitar a possibilidade de que os outros na fila do
supermercado estão tão entediados e frustrados quanto eu, e, no cômputo geral, algumas dessas pessoas provavelmente têm vidas
bem mais difíceis, tediosas ou dolorosas do que eu.
Fazer isso é difícil, requer força de vontade e empenho mental. Se vocês forem como eu, alguns dias não conseguirão fazê-
lo, ou simplesmente não estarão a fim. Mas, na maioria dos dias, se estiverem atentos o bastante para escolher, poderão preferir
olhar melhor para essa mulher gorducha, inexpressiva e estressada que acabou de berrar com a filhinha na fila da caixa. Talvez ela
não seja habitualmente assim. Talvez ela tenha passado as três últimas noites em claro, segurando a mão do marido que está
morrendo. Ou talvez essa mulher seja a funcionária mal remunerada do Departamento de Trânsito que, ontem mesmo, por meio de
um pequeno gesto de bondade burocrática, ajudou algum conhecido seu a resolver um problema insolúvel de documentação. (...)
(Disponível em <http://revistapiaui.estadao.com.br/materia/a-liberdade-de-ver-os-outros/> .Acesso em 01/03/2016)
A palavra “prosaico”, no segundo parágrafo texto, significa: