Quem tem medo da “ideologia de gênero”?
Já se passaram vários dias desde que vi aparecer pelas páginas deste ilustre jornal vários artigos nos quais outros ilustres
(jornalistas, professores universitários) zombam do feminismo e dos “ideólogos de gênero”, que pelo jeito viraram inimigo público
número 1, os responsáveis por todo tipo de apocalíptico mal do século 21, desde a “destruição das famílias” até a ruína da educação
pública brasileira. Urgente, portanto, fazer alguns esclarecimentos.
Em primeiro lugar, sobre o uso do termo “ideologia”, conceito básico das ciências sociais: ideologia todos temos. “Ideologia
de gênero” também. Ou mais conservadora e convencional, ou mais crítica ou radical. Mais machista, ou mais feminista, se quiser.
O maior problema de empregar o termo “ideologia de gênero” só para feministas ou para quem critica as concepções dominantes é
que isso escamoteia toda uma discussão epistemológica sobre ponto de vista, sobre a possibilidade de objetividade e como as
subjetividades influenciam nesta; além disso, diga-se de passagem, parece facilitar que se atribua a caraterística de quem está “do
lado da (verdadeira) ciência” – a um grupo que inclui, neste caso muito curioso, muitas pessoas que têm mais afinidade com o
criacionismo do que com a teoria da evolução.
Teorias de gênero também são diversas, e uma das contribuições da construção e consolidação de todo um campo de
pesquisa que vem ganhando cada vez mais espaço nas instituições acadêmicas no mundo inteiro, a partir do fim da década de
1970, é que vem estimulando o debate e a troca entre pessoas e perspectivas, com o intuito de contribuir para a igualdade e uma
vida social mais justa. A perspectiva pós-estruturalista associada particularmente ao pensamento da filósofa norte-americana Judith
Butler – que aponta para as dificuldades de dividir a humanidade em duas categorias discretas, biologicamente identificáveis e
discursivamente construídas como “opostas” – é, nas suas ramificações políticas, antes de mais nada a reivindicação do direito às
diferenças. Diferenças que surgem espontaneamente da vida humana – biológica, social, cultural, política – e se manifestam hoje,
de forma mais intensa exatamente porque já tivemos ganhos políticos no terreno dos direitos humanos e sociais. Que incluem
questões de gênero e sexualidade, assim como de classe, raça e etnicidade, entre outras, incorporadas amplamente pela sociologia
contemporânea como disciplina acadêmica, como base de todo esforço de compreensão científica e sensível do mundo.
Como bem nos lembram duas estudiosas de gênero e cultura, Elaine Showalter e Lynne Segal (a primeira, norte-americana
da área de estudos literários; a segunda, inglesa e psicóloga), as ansiedades de gênero surgem como fenômenos correlatos aos
tempos de intensa mudança social e cultural, como foi o caso de dois momentos de passagem de século – do 19 para o 20, do 20
para o 21. Fazem parte das tentativas de lidar com os deslocamentos que caracterizam esses processos, deslocamentos que geram
incertezas e instabilidade, assim como a promessa de avanços de todo tipo. Parece-me que a pergunta que precisa ser feita, no
tempo e espaço do Brasil atual, e nesta Curitiba que habitamos, é por que determinadas pessoas sentem-se tão ameaçadas pelo
direito de outras: de existir e de ter visibilidade, reconhecimento, dignidade.
(Miriam Adelman, Gazeta do Povo, 29/06/2015. Adaptado de <htto://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/artigos/quem-tem-medo-da-ideologia-de-genero-9zvgj6sp3edsnli2vfw2psbxm>.)
No terceiro parágrafo, o pronome “que” (sublinhado no texto) retoma: