SóProvas


ID
2234062
Banca
FUNCAB
Órgão
Prefeitura de Anápolis - GO
Ano
2016
Provas
Disciplina
Português
Assuntos

O tempo amarrota a lembrança e subverte a ordem.

  Parecia muito pequeno o ideal de meu pai, naquele tempo, lá. A escola, onde me matriculou também na caixa escolar – para ter direito a uniforme e merenda –, devia me ensinar a ler, escrever e a fazer conta de cabeça. O resto, dizia ele, é só ter gratidão, e isso se aprende copiando exemplos. 

  Difícil não conferir razão a meu pai em seus momentos de anjo. Ele pendia a cabeça para a esquerda, como se escutando o coração, e falava sem labirintos. Dizia frases claras, acordando sorrisos e caminhos. Parecia querer argumentar sem ele mesmo ter certeza, tornando assim as palavras cuidadosas.

  Um pesar estrangeiro andou atordoando meu pouco entendimento. Ir para a escola era abandonar as brincadeiras sob a sombra antiga da mangueira; era renunciar o debaixo da mesa resmungando mentiras com o silêncio; era não mais vistoriar o atrás da casa buscando novas surpresas e outros convites. 

Contrapondo-se a essas perdas, havia a vontade de desamarrar os nós, entrar em acordo com o desconhecido, abrir o caderno limpo e batizar as folhas com a sabedoria da professora, diminuir o tamanho do mistério, abrir portas para receber novas lições, destramelar as janelas e espiar mais longe. Tudo isso me encantava.

  Por definição minha, perseguindo respostas, eu desconfiava ser a escola um lugar de muito respeito. Era preciso ter as unhas limpas e aparadas, cabelo penteado, caderno caprichado dentro do embornal, uniforme lavado – calça azul-marinho e camisa de fustão branco – e passado com ferro de brasa, goma de polvilho rala na gola, para não arranhar o pescoço.

  A professora, quando os alunos ainda na fila e do lado de fora da sala, lia a gente como se fosse um livro. E mãe nenhuma gostaria de ser chamada de desmazelada pela mulher mais respeitada do lugar. [...] 

  Eu carregava comigo um chocalho de cascavel amarrado em um cordão encardido, preso no pescoço. Simpatia de minha mãe para eu não urinar na cama. A gola engomada de minha camisa não escondia essa sentença peçonhenta. Eu vivia como a canção: “camisa aberta ao peito, pés descalços e braços nus”. [...] 

  Eu corria pelos matos cheio de carrapichos e carrapatos, saltando córrego, me equilibrando em pinguelas, descobrindo frutas maduras, suspeitando ninhos e passarinhos. Trazia, ainda, uma vergonha de todo mundo, mas deixar sumir na “campina” o chocalho, simpatia de mãe, seria brincar com sua fé. Então eu andava devagarinho, pisando certo,aprumado e manso, para evitar o chiquechique do chocalho. Cascavel anda em dupla, me diziam, e o chocalho serve para chamar o outro.

[...]

  Vi meu pai cochichar com minha mãe, e de início enredei ser carinho, como o de Dr. Júlio Leitão e Dona Pequenina. Abri bem os ouvidos, pois os olhos não dava. Ele dizia ser o Dr. Jair, seu patrão, como uma cobra: mordia e soprava. Eu balançava a cabeça, com força, de vez em quando, acordando a simpatia de minha mãe. Vontade de chamar outra cascavel só para ver uma cobra mordendo e soprando, se frio ou quente seu bafo.

  Dr. Jair visitou minha mãe, uma noite [...]. Não saí de perto dele nem tirei os olhos de sua boca, esperando o homem morder e soprar. Ele falou foi muito de riqueza e de como contava com o trabalho de meu pai, seu melhor empregado, capaz de carregar água em peneira. Perdi meu tempo.

BARTOLOMEU CAMPOS QUEIRÓS.Ler, escrever e fazer conta de cabeça.São Paulo: Global, 2004.

Vocabulário

destramelar: destrancar

embornal: sacola

peçonhenta: venenosa 


Considere as seguintes afirmativas:

I. É possível identificar a presença de um personagem-narrador, que relata memórias de sua infância.

II. O garoto demonstra muito afeto à professora e admira sua capacidade de ler cada aluno.

III. O título aponta a interferência da passagem do tempo na narrativa de memórias.


Está correto o que se afirma em:

Alternativas
Comentários
  • O garoto demonstra muito afeto à professora? Sinceramente não consegui identificar a parte do MUITO AFETO.

  • A banca forçou a barra com essa alternativa II.

    O único trecho que fala sobre a professora no texto é:

    "A professora, quando os alunos ainda na fila e do lado de fora da sala, lia a gente como se fosse um livro. E mãe nenhuma gostaria de ser chamada de desmazelada pela mulher mais respeitada do lugar."

    Ou seja, a professora ficava parada na porta da sala, analisando a roupa das crianças. As mães temiam serem chamadas de desmazeladas pela professora. Com tudo isso, parece que a mulher era a mais respeitada da escola por ser autoritária, exigente... o respeito, na frase, passa mais a impressão de ser por medo do que de ser por afeto.

    A meu ver, gabarito correto seria letra C, mas a banca considerou letra B.

  • Não deu para entender a posição da Banca no item II, em nenhum momento o aluno demonstra afeto, e sim respeito.

  • Única passagem do texto que remete a professora é:

    A professora, quando os alunos ainda na fila e do lado de fora da sala, lia a gente como se fosse um livro. E mãe nenhuma gostaria de ser chamada de desmazelada pela mulher mais respeitada do lugar. [...] 

    Mas não consegui identificar também demonstração de afeto, ainda mais MUITO afeto.

    Prefiro pensar que não seja "questão vendida" para figurinhas marcadas.

  • Aqui nesta passagem o autor exprime admiração ao destacar a "sabedoria da professora":

    (4ºparágrafo) Contrapondo-se a essas perdas, havia a vontade de desamarrar os nós, entrar em acordo com o desconhecido, abrir o caderno limpo e batizar as folhas com a sabedoria da professora, diminuir o tamanho do mistério, abrir portas para receber novas lições, destramelar as janelas e espiar mais longe. Tudo isso me encantava.

    Acredito que seja isso :)

  • São por essas questões que eu passo a duvidar da instituição.

  • Eeeeeitaaa.... que "afeto" é esse!?