SóProvas


ID
2363266
Banca
INSTITUTO AOCP
Órgão
EBSERH
Ano
2017
Provas
Disciplina
Português
Assuntos

A CULTURA DO ESTUPOR

Por Lucio Carvalho

  Pelo menos que eu saiba, felizmente não vivo nem perto da cultura do estupro, mas vivo, sim, dentro da cultura do estupor. Vivemos todos.
  Não ouço piadas machistas. Não consumo nem ouço músicas apelativas ou com conteúdo violento nem sobre a mulher nem sobre ninguém. Não dou legitimidade nem por hipótese a preconceitos, seja de que espécie forem. Entretanto, porque não viva em contato direto com ela, a tal cultura do estupro, não é por isso que vou dizer que não exista. E isso porque esse é o mesmo comportamento negacionista de quem vive na cultura do estupor e não percebe.
  A cultura do estupor é quase o mesmo que a cultura da indiferença, com a diferença de que ela implica numa espécie de assombro perpétuo perpetuamente sem ação, estéril, de quem não age, de quem não toma qualquer atitude, de quem tem toneladas de informação, mas ação que é bom, quase nenhuma. Na cultura da indiferença, por outro lado, há uma escolha prévia, o que a torna ainda mais comprometedora, pelo menos no que diz respeito as mentalidades. Dessa eu não vivo dentro, mas fatalmente vivo perto, porque em alguma medida todo mundo vive. Uns mais, outros menos.
  Não estou querendo dizer que a cultura do estupor é mais grave que a do estupro porque não é, mas elas têm entre si um alto grau de parentesco, se é que uma não está contida na outra. Só que, enquanto uma vítima de estupro se vê forçada a reinventar a própria vida, na cultura do estupor às vítimas resta apenas trocar a fonte, o canal ou o link dos terrores diários. Sair e voltar a entrar no Facebook, por exemplo.
  Mesmo dentro disso que chamo de cultura do estupor parece haver graus variados de acometimento. Pode ir do embasbacamento à inconsciência. Da surpresa à alienação. Da imobilidade à dessensibilização completa. Da empatia seletiva à misantropia, essa que parece ser sua forma mais extremada.
  Confesso que tive de ler bastante sobre tudo o que se divulgou sobre a cultura do estupro após o trágico evento do RJ para entender como é que isso me afetava e a resposta que encontrei é que, como a maioria dos homens, pelo menos os que não tiveram a sombra do estupro rondando sua vida, é um assunto quase extraterreno. É como uma hipótese sobre a qual não se quer nem pensar. Mas isso é assim porque não estamos no lugar de ser sem mais nem menos uma vítima ocasional da situação e por isso minimizamos o horror alheio, submersos na cultura do estupor.
  De certa maneira, eu penso que o bombardeio dos últimos dias, em sua extensa maioria feita por mulheres, foi providencial e embora acredite na necessidade de uma política penal eficiente contra os criminosos, é preciso vencer o estupor social. Denunciar e não só denunciar, não permitir a impunidade, desnormalizar a violência de gênero. Não se trata apenas de empatia, mas de um compromisso do laço humano em não fechar-se em si mesmo e na sua perspectiva individual. Nesse ponto de vista, a questão de violência de gênero é até primária e simples demais, mas é justamente (e não coincidentemente) dela, da integridade do corpo feminino, que viemos todos.
  Lembro ainda que, assim como o estupro, violências sexuais acontecem diariamente – quase sempre na invisibilidade – contra pessoas com deficiência (especialmente a intelectual), crianças de qualquer sexo, gays, travestis, transgêneros, idosos e quaisquer pessoas em situação de vulnerabilidade. A violência é uma excrescência do convívio social e deve ser punida e combatida em sua origem, sob pena de sua permanente reprodução.
  A questão é bem mais complexa que um meme. Embora se assuma rápida e repetidamente a atribuição de culpabilização social e se deseje fazer crer que esta seria uma característica encruada na sociedade brasileira, eu discordo dessa ideia. Penso que não existe este ente coletivo: a sociedade brasileira. Existem sociedades brasileiras. No plural. E a exacerbação da violência costuma acontecer em territórios conflagrados, não necessariamente os periféricos.
  Discordo que a violência seja um traço cultural da sociedade brasileira, população acostumada a enfrentar violências e privações seculares sem maiores registros de levantes e revoltas populares. A violência extremada implica um complexo dinâmico envolvendo tanto a expressão do ódio quanto ao escasso cerceamento moral. Não por acaso costuma ocorrer contra segmentos vulneráveis, como os indígenas e moradores de rua eventualmente incinerados em espaços públicos, contra prostitutas e contra pessoas sem qualquer defesa. 
  Não se trata de invocar aqui mais uma vez a platitude da necessidade de investimento em educação, mas na de uma educação humanizante, cujos resultados não visem meramente o sucesso econômico e social, mas o aprendizado do humano, suas pulsões e de uma ética capaz de garantir, ou pelo menos promover, a integridade de todos e o respeito ao sujeito e às individualidades.
  Ainda assim, apenas o investimento em educação pública poderia de fato reverter a banalização da violência e substituí-la por acesso a outros e mais complexos elementos culturais. É bem pouco simples, porque a cultura da violência parece também ser uma mimese de uma cultura de poder. Ou seja, reproduz-se com argumentos precários e de dominação violenta aquilo que em outras esferas econômicas e culturais está dito e representado de outra maneira, mas de uma forma essencialmente idêntica, que é a preponderância do poder econômico e sua simbologia.
  Seja como for, é preciso seguir o exemplo das mulheres que, diante do horror de uma situação inadmissível como a que se repetiu recentemente no RJ, romperam justamente a acachapante cultura do estupor, como se irrompendo de dentro de uma bolha estourada. É absolutamente triste que precisemos de casos tão extremados para fazê-lo, mas esse é justamente o indicativo do alto grau de naturalização cultural da violência social em que vivemos todos.
  A cultura do estupor funciona como a película dessa bolha, abrigando em seu interior diversos tipos de violência, entre as quais a de gênero e a própria cultura do estupro. Se regularmente é possível viver em seu interior longe de uma ou de outra, mais ou menos repugnante, é de perguntar como podemos nos abrigar dentro disso e com estes mesmos valores. E como e por que razões, uma vez saídos dali, desejaríamos voltar. A multiplicação de denúncias e o expurgo coletivo em função do crime de estupro coletivo, dessa vez no RJ, que não deveria ter existido nem sequer ter nenhuma função social, eu quero crer que pelo menos serviu para nos mostrar o quão hediondo é ter de viver sob a cultura do estupor e o quanto nos habituamos e dessensibilizamos em suas muitas derivações violentas.

Texto adaptado. Fonte: http://www.inclusive.org.br/arquivos/29417

Assinale a alternativa correta quanto ao que se afirma entre parênteses sobre o excerto.

Alternativas
Comentários
  • Acho que é: diz respeito às mentalidades CRASEADO
  •  Regência Nominal é o nome da relação existente entre um nome (respeito) e os termos regidos por esse nome (mentalidades).

    O substantivo respeito, pode ser empregado com as preposições: acomdepor e com a locução prepositiva para com. Na alternativa, houve uma inadequação por que o "as" em  "diz respeito as mentalidades" deveria estar craseado devido a soma da preposição "a" com o artigo "a". O certo seria "pelo menos no que diz respeito às mentalidades".

  •  c) “[...] há uma escolha prévia, o que a torna ainda mais comprometedora, pelo menos no que diz respeito as mentalidades.” (há uma inadequação quanto à regência nominal).

    CORRETO SERIA: diz respeito às mentalidades, na dúvida substitua "mentalidades" por  "pensamentos" ou qualquer outro sinônimo, ficaria >  diz respeito aos pensamentos.

     

    Então está corretamente indagado o ERRO GRAMATICAL DA QUESTÃO.

     

     

     

    Ademais:

     

     a) A cultura do estupor é quase o mesmo que a cultura da indiferença, com a diferença de que ela implica numa espécie de assombro perpétuo [...]” (há uma inadequação quanto à concordância verbal). ERRADO, HÁ DESVIDO QUANTO A REGÊNCIA VERBAL. 

    VERBO IMPLICAR:

    SENTIDO DE ACARRETAR, TRAZER CONSEQUÊNCIAS, OCASIONAR > VTD, etnão a preposição de está empregada erroneamente.

     

     b) “Não dou legitimidade nem por hipótese a preconceitos, seja de que espécie forem.” (há uma inadequação quanto à concordância verbal).

    A FRASE CORRETA SERIA >"Não dou legitimidade , nem por hipótese, a preconceitos, seja de que espécie forem.” HÁ ERRO DE PONTUAÇÃO, NÃO DE CONCORDÂNCIA

     

    d) “[...] na cultura do estupor às vítimas resta apenas trocar a fonte, o canal ou o link dos terrores diários.” (há uma inadequação quanto à concordância verbal).

    O verbo restar está anteposto ao verbo, sendo assim não há que se falar em erro, pois pode concordar com o núcleo mais próximo ou com todo o sujeito composto.

     

     e) “[...] mas elas têm entre si um alto grau de parentesco, se é que uma não está contida na outra.” (há uma inadequação quanto à colocação pronominal).  NÃO HÁ ERRO

  • Implica numa? com preposição em?

  • A alternativa A estaria certa se o erro descrito fosse de regência verbal e não concordância verbal.

  • Qual o erro da E?

  • Elly, na letra E o "se" não é pronome, é conjunção. A frase está toda correta.

  • Quanto ao resta na alternativa D não deveria estar no plural? RESTAM?!??? 

     

  • Leonardo, vc precisa entender o sentido. Não seria: As vítimas resta”M”.... e sim: Resta a elas. Entende? Vítimas não seria sujeito de “Restar”. Por isso ao substituir o pronome pelo substantivo e ao restringi-lo mediante colocação de artigo, houve a fusão que culminou no acento grave.
  • Acredito haver erro de concordância na "B" sim:

     

    “Não dou legitimidade nem por hipótese a preconceitos, seja de que espécie forem.”

     

    Na minha opinião deveria ser:

     

    “Não dou legitimidade nem por hipótese a preconceitos, sejam de que espécie forem.”

     

    Alguém poderia me esclarecer?

     

     

  • Letra C.

    "(...) pelo menos no que diz respeito as mentalidades.” (há uma inadequação quanto à regência nominal)."

    "(...) pelo menos ao que diz respeito as mentalidades.”

    O que diz respeito, diz respeito a algo, e não em algo.

    Vai Corinthians.

  • Não é implica numa. É implica uma...implicar no sentido de acarretar é VTD.

  • Marquei para correção do professor.

  • Apesar de o comentário do João ter 9 curtidas, eu discordo, pois na minha opinião "no que diz respeito" está correto, pq significa NAQUILO que diz respeito, é caso de pronome demonstrativo.  

     

    Como os colegas disseram, o erro é a falta a crase. Respeito é nome, logo há problema de regência nominal.

     

    A Professora Flávia Rita explica em suas aulas:

    Pronome relativo:

    Introduz oração adjetiva

    Retoma termo antecedente

    E ainda sempre menciona: não se esqueçam do caso DR(demonstrativo seguido de pronome).

    Exemplo dela: Pensou no que aconteceu.

    Pensou NAQUILO que aconteceu.

     

    Em relaçao ao comentário do Alquimista, eu discordo da letra A, pois conforme o colega Paulo mencionou, o verbo implicar é transitivo direto, ou seja, está errado a contração de em + um.  A expressão "implica numa espécie" então está errada.

    Segundo a  Flávia Rita:

    Implicar com sentido de acarretar------> Verbo transitivo direto----> NÃO USA EM.

    Ex: Mudança implica esforço.

     

    Implicar com sentido de ser implicante-------> Verbo transitivo indireto

    Ex: Ela implicava com a irmã.

     

    Implicar com sentido de envolver-se--------> Verbo transitivo indireto

    Ex: Isso implica problema

     

    Fonte: minhas anotações da aula da querida Flávia Rita.

     

  • Tá bom, não reclamo mais ...

    #voltaFCC :)

     

    Indiquem a questão para comentário, plis!

  • a palavra "respeito" pede a preposição "a", logo deveria vir "diz respeito às mentalidades"

    ...diz respeito aos acontecimentos, aos fatos, à iniciativa...

  • A) Erro de regência nominal. (A cultura do estupor é quase A MESMA (cultura) que a cultura da indiferença).

    -

    B) Erro de regência (QUAIS).

    -

    C) Erro de regência nominal (ÀS MENTALIDADES). - Gabarito. - 

    -

    D) Erro de pontuação, deveríamos ter uma vírgula após "estupor" (Adjunto adverbial de grande extensão).

    -

    E) Não há erro de colocação pronominal.

  • D O SUJEITO DE RESTA É SUJEITO ORACIONAL, LOGO NÃO HA POSSIBILIDADE DE IR PARA O PLURAL.

    RESTA O QUE? TROCAR A FONTE....

  • O erro da alternativa a) é a regência do verbo implicar: "implica numa", no sentido usado no texto o verbo não exige preposição, correto: "implica uma"

  • O ARTHUR HENRIQUE arrebentou no comentario e matou a charada! A alternativa A tem erro de REGÊNCIA e não de CONCORDANCIA.

  • Justificativas

    a) Não há erro de concordância verbal mas há erro de regência

    b) Há erro de regência em quais (deveria estar escrito "quais espécies forem")

    c) Gabarito. O que diz respeito, diz respeito a alguma coisa

    d) Errada. Há erro de pontuação, visto que deveria haver uma vírgula antes do adjunto adverbial deslocado "na cultura do estupor"

    e) Errada. Não há o erro indicado.