SóProvas


ID
2363275
Banca
INSTITUTO AOCP
Órgão
EBSERH
Ano
2017
Provas
Disciplina
Português
Assuntos

A CULTURA DO ESTUPOR

Por Lucio Carvalho

  Pelo menos que eu saiba, felizmente não vivo nem perto da cultura do estupro, mas vivo, sim, dentro da cultura do estupor. Vivemos todos.
  Não ouço piadas machistas. Não consumo nem ouço músicas apelativas ou com conteúdo violento nem sobre a mulher nem sobre ninguém. Não dou legitimidade nem por hipótese a preconceitos, seja de que espécie forem. Entretanto, porque não viva em contato direto com ela, a tal cultura do estupro, não é por isso que vou dizer que não exista. E isso porque esse é o mesmo comportamento negacionista de quem vive na cultura do estupor e não percebe.
  A cultura do estupor é quase o mesmo que a cultura da indiferença, com a diferença de que ela implica numa espécie de assombro perpétuo perpetuamente sem ação, estéril, de quem não age, de quem não toma qualquer atitude, de quem tem toneladas de informação, mas ação que é bom, quase nenhuma. Na cultura da indiferença, por outro lado, há uma escolha prévia, o que a torna ainda mais comprometedora, pelo menos no que diz respeito as mentalidades. Dessa eu não vivo dentro, mas fatalmente vivo perto, porque em alguma medida todo mundo vive. Uns mais, outros menos.
  Não estou querendo dizer que a cultura do estupor é mais grave que a do estupro porque não é, mas elas têm entre si um alto grau de parentesco, se é que uma não está contida na outra. Só que, enquanto uma vítima de estupro se vê forçada a reinventar a própria vida, na cultura do estupor às vítimas resta apenas trocar a fonte, o canal ou o link dos terrores diários. Sair e voltar a entrar no Facebook, por exemplo.
  Mesmo dentro disso que chamo de cultura do estupor parece haver graus variados de acometimento. Pode ir do embasbacamento à inconsciência. Da surpresa à alienação. Da imobilidade à dessensibilização completa. Da empatia seletiva à misantropia, essa que parece ser sua forma mais extremada.
  Confesso que tive de ler bastante sobre tudo o que se divulgou sobre a cultura do estupro após o trágico evento do RJ para entender como é que isso me afetava e a resposta que encontrei é que, como a maioria dos homens, pelo menos os que não tiveram a sombra do estupro rondando sua vida, é um assunto quase extraterreno. É como uma hipótese sobre a qual não se quer nem pensar. Mas isso é assim porque não estamos no lugar de ser sem mais nem menos uma vítima ocasional da situação e por isso minimizamos o horror alheio, submersos na cultura do estupor.
  De certa maneira, eu penso que o bombardeio dos últimos dias, em sua extensa maioria feita por mulheres, foi providencial e embora acredite na necessidade de uma política penal eficiente contra os criminosos, é preciso vencer o estupor social. Denunciar e não só denunciar, não permitir a impunidade, desnormalizar a violência de gênero. Não se trata apenas de empatia, mas de um compromisso do laço humano em não fechar-se em si mesmo e na sua perspectiva individual. Nesse ponto de vista, a questão de violência de gênero é até primária e simples demais, mas é justamente (e não coincidentemente) dela, da integridade do corpo feminino, que viemos todos.
  Lembro ainda que, assim como o estupro, violências sexuais acontecem diariamente – quase sempre na invisibilidade – contra pessoas com deficiência (especialmente a intelectual), crianças de qualquer sexo, gays, travestis, transgêneros, idosos e quaisquer pessoas em situação de vulnerabilidade. A violência é uma excrescência do convívio social e deve ser punida e combatida em sua origem, sob pena de sua permanente reprodução.
  A questão é bem mais complexa que um meme. Embora se assuma rápida e repetidamente a atribuição de culpabilização social e se deseje fazer crer que esta seria uma característica encruada na sociedade brasileira, eu discordo dessa ideia. Penso que não existe este ente coletivo: a sociedade brasileira. Existem sociedades brasileiras. No plural. E a exacerbação da violência costuma acontecer em territórios conflagrados, não necessariamente os periféricos.
  Discordo que a violência seja um traço cultural da sociedade brasileira, população acostumada a enfrentar violências e privações seculares sem maiores registros de levantes e revoltas populares. A violência extremada implica um complexo dinâmico envolvendo tanto a expressão do ódio quanto ao escasso cerceamento moral. Não por acaso costuma ocorrer contra segmentos vulneráveis, como os indígenas e moradores de rua eventualmente incinerados em espaços públicos, contra prostitutas e contra pessoas sem qualquer defesa. 
  Não se trata de invocar aqui mais uma vez a platitude da necessidade de investimento em educação, mas na de uma educação humanizante, cujos resultados não visem meramente o sucesso econômico e social, mas o aprendizado do humano, suas pulsões e de uma ética capaz de garantir, ou pelo menos promover, a integridade de todos e o respeito ao sujeito e às individualidades.
  Ainda assim, apenas o investimento em educação pública poderia de fato reverter a banalização da violência e substituí-la por acesso a outros e mais complexos elementos culturais. É bem pouco simples, porque a cultura da violência parece também ser uma mimese de uma cultura de poder. Ou seja, reproduz-se com argumentos precários e de dominação violenta aquilo que em outras esferas econômicas e culturais está dito e representado de outra maneira, mas de uma forma essencialmente idêntica, que é a preponderância do poder econômico e sua simbologia.
  Seja como for, é preciso seguir o exemplo das mulheres que, diante do horror de uma situação inadmissível como a que se repetiu recentemente no RJ, romperam justamente a acachapante cultura do estupor, como se irrompendo de dentro de uma bolha estourada. É absolutamente triste que precisemos de casos tão extremados para fazê-lo, mas esse é justamente o indicativo do alto grau de naturalização cultural da violência social em que vivemos todos.
  A cultura do estupor funciona como a película dessa bolha, abrigando em seu interior diversos tipos de violência, entre as quais a de gênero e a própria cultura do estupro. Se regularmente é possível viver em seu interior longe de uma ou de outra, mais ou menos repugnante, é de perguntar como podemos nos abrigar dentro disso e com estes mesmos valores. E como e por que razões, uma vez saídos dali, desejaríamos voltar. A multiplicação de denúncias e o expurgo coletivo em função do crime de estupro coletivo, dessa vez no RJ, que não deveria ter existido nem sequer ter nenhuma função social, eu quero crer que pelo menos serviu para nos mostrar o quão hediondo é ter de viver sob a cultura do estupor e o quanto nos habituamos e dessensibilizamos em suas muitas derivações violentas.

Texto adaptado. Fonte: http://www.inclusive.org.br/arquivos/29417

Assinale a alternativa correta quanto ao que se afirma entre parênteses a respeito do que estiver em destaque na estrutura sintática.

Alternativas
Comentários
  • c) Existir é VERBO INTRANSITIVO. Não tem objeto direito!

  • “Embora se assuma rápida e repetidamente a atribuição de culpabilização social e se deseje fazer crer que esta seria uma característica encruada na sociedade brasileira” (sujeito).

    Assuma - VTD

    Se - Partícula apassivadora

    a atribuição de culpabilização social - SUJEITO PACIENTE

  • Acertei a questão, mas não entendir a letra B, algumém sabe explicar ?

     

  •  a)“Só que, enquanto uma vítima de estupro se vê forçada a reinventar a própria vida, na cultura do estupor às vítimas resta apenas trocar a fonte, o canal ou o link dos terrores diários. Sair e voltar a entrar no Facebook, por exemplo.” (Adjunto adverbial que indica modo).

    Adj. Adv. de tempo

     

     b)“ que, enquanto uma vítima de estupro se vê forçada a reinventar a própria vida, na cultura do estupor às vítimas resta apenas trocar a fonte [...]” (adjetivo de dois gêneros que, no caso, tem o mesmo sentido de: desacompanhado, unicamente, somente).

    O só, nesta frase, tem sentido de oposição --> No entanto, na cultura do estupor às vítimas.....

     

     c)“Existem sociedades brasileiras.” (objeto direto).

    Existir = VI  

    Sociedades brasileiras existem.

    sociedades brasileiras= sujeito

     

     d)“É absolutamente triste que precisemos de casos tão extremados para fazê-lo [...]” (objeto direto).

    Quem precisa, precisa de algo.... =  casos tão extremados é objeto indireto

     

     e)“Embora se assuma rápida e repetidamente a atribuição de culpabilização social e se deseje fazer crer que esta seria uma característica encruada na sociedade brasileira” (sujeito). Correto

     

     

    Erros, avisem-me.

  • Henrique Albuquerque.

    O erro da letra b é dizer que a palavra "só" está empregada no contexto como adjetivo - sozinho, desacompanhado.

    "SÓ" pode assumir dois sentidos: adjetivo e advérbio.

    No caso do trecho acima ele assume a função de advérbio - somente.

    É esse o erro.

     

  • a) A  primeira está errada, pois trata-se de uma ORÇÂO SUBORDINADA ADVERBIAL TEMPORAL.

    b)  "Só" = Somente, logo ADJ. ADVERBIAL.

    c) Verbo existir. INTRANSITIVO. o que é que existe? Sociedades brasileira, logo SUJEITO DA AÇÂO VERBAL 

    d) ... Precisemos....  Quem precisa, precisa de alguma coisa? Logo OBJETO INDIRETO.

    e) O que é que é assumido? SUJEITO

     

  • Acredito que na letra A temos uma ORAÇÂO SUBORDINADA ADVERBIAL PROPORCIONAL.

  • Embora a atribuição de culpabilização social seja rápida e repetidamente assumida e se deseje fazer crer que esta seria uma característica encruada na sociedade brasileira....

     

    Resposta: Letra E. 

     

  • A) Oração subordinada adverbial temporal [Enquanto - - - Se vê]

    -

    B) Acho que é uma partícula expletiva (Ser+que).

    -

    C) Sujeito.

    -

    D) "DE" é uma preposição, logo, não temos objeto direto.

    -

    E) Sujeito. Gabarito.


  • C)VERBO EXISTIR É INTRANSITIVO PORTANTO NAO EXIGE COMPLEMENTO

    SOCIEDADES BRASILEIRAS = É O SUJEITO!! =)


    e)o que é que é assumido ? a atribuição de culpabilização social...

  • Eu pensei que o sujeito da E seria "na sociedade brasileira".

  • A alternativa "E" apresenta um sujeito paciente.

    assuma-se a atribuição de culpabilização social 

    A atribuição de culpabilização é assumida...

  • B) PALAVRA DENOTATIVA DE OPOSIÇÃO.

    No texto, ela insere uma ideia oposta ao que foi dito no trecho anterior.

  • Embora a atribuição de culpabilização social seja assumida ... (voz passiva analítica)

    A alternativa está na v. p. sintética

  • letra E

    pergunte ao verbo "embora se assuma rápido e repetidamente o que? R- a atribuição de culpabilização social (este é o sujeito, a resposta! )

    atribuição de culpabilização não é o sujeito pois ja está inserida em outra oração "e se deseje fazer crer que esta seria..."

    Porque outra oração? por causa do verbo deseje (dois verbos, 2 orações) oração subordinada

  • letra C

    verbo EXISTIR é intransitivo e pessoal (possui sujeito). - O verbo HAVER, no sentido de EXISTIR, é transitivo direto e impessoal (não possui sujeito). ... Vale o mesmo para as locuções verbais nas quais esses verbos sejam principais.

    alternativa correta: letra E

  • Quando o sentido se referir a “somente” ou “apenas”, constatamos estar diante de um advérbio – o que significa afirmar que essa flexão não é permitida. Como exemplo, citamos:

    Eles  queriam saber os resultados.(somente)

    As crianças ficaram sós, enquanto todos saíram.

    Atesta-se que por se tratar da palavra só, ora situada na condição de adjetivo, a flexão se torna evidente, concordando, portanto, com o substantivo a que se refere: ela= só / as crianças = sós.

    Não pare agora...

    RUMO A GLORIOSA PMCE DO CEARÁ.

  • Gabarito: E

    Identificando as vozes verbais!

    A) Analítica ou Verbal: [ verbo auxiliar+ particípio( do, rto, sto, ado, odo...)]

    B) Sintética ou pronominal [verbo transitivo direto +/ou verbo indireto + SE (PARTICULA APASSIVADORA)]= o objeto direto transforma-se em SUJEITO. ( é o caso da questão)

    Temos voz PASSIVA, ou seja, o sujeito sofre a ação:

    “Embora se assuma rápida e repetidamente a atribuição de culpabilização social e se deseje fazer crer que esta seria uma característica encruada na sociedade brasileira” (sujeito).

    Assuma - VTD

    Se - Partícula apassivadora

    a atribuição de culpabilização social - SUJEITO PACIENTE

  • Para responder a esta questão, exige-se conhecimento em sintaxe. O candidato deve indicar a assertiva corretamente avaliada sintaticamente. Vejamos:

    a) Incorreta.

    “Só que, enquanto uma vítima de estupro se vê forçada a reinventar a própria vida, na cultura do estupor às vítimas resta apenas trocar a fonte, o canal ou o link dos terrores diários. Sair e voltar a entrar no Facebook, por exemplo.”

    Não há adjunto adverbial de modo, mas sim duas orações, uma marcada pelo verbo "vê" e a outra reduzida pelo infinito "reivindicar". No entanto, a parte destacada é iniciada por uma conjunção temporal.

    b) Incorreta.

    que, enquanto uma vítima de estupro se vê forçada a reinventar a própria vida, na cultura do estupor às vítimas resta apenas trocar a fonte [...]”

    A palavra "só" é apenas de realce, e não adjetivo, visto que não há qualquer relação com substantivo.

    c) Incorreta.

    “Existem sociedades brasileiras.”

    A frase está invertida. A ordem direta é assim: "Sociedades brasileiras existem.". Assim, podemos ver que se trata do sujeito, e não do objeto direto.

    d) Incorreta.

    “É absolutamente triste que precisemos de casos tão extremados para fazê-lo [...]”

    A expressão em destaque completa o verbo "precisar" por meio de uma preposição "de", dessa forma, não se trata de um objeto direto, mas sim objeto indireto.

    e) Correta.

    “Embora se assuma rápida e repetidamente a atribuição de culpabilização social e se deseje fazer crer que esta seria uma característica encruada na sociedade brasileira” (sujeito).

    A oração encontra-se na voz passiva sintética. Podendo ser lida assim com alguns ajustes: Embora se assuma a atribuição de culpabilização social. Na voz passiva analítica: Embora seja assumida a atribuição de culpabilização social.

    O que é assumida? A atribuição de culpabilização social. Ou seja, de fato temos um sujeito em destaque nesta assertiva.

    Gabarito: E