Tudo isso deve parecer bem confuso e incerto. Sem dúvida, incerto, pois tudo isso não passa de uma hipótese. Mas para que fique um pouco menos confuso, gostaria de formular algumas ‘proposições’ – no sentido não de coisas aceitas, mas de coisas ofereci das para experiências ou provas futuras. Por ‘verdade’ entender um conjunto de procedimentos regulados para a produção, a legislação, a repartição, a circulação e o funcionamento dos enunciados. A ‘verdade’ está circularmente ligada a sistemas de poder, que a produzem e apoiam, e a efeitos de po der que ela induz e que a reproduzem. ‘Regime’ da verdade. Esse regime não é simplesmente ideológico ou superestrutural; foi uma condição de formação e desenvolvimento do capitalismo. É ele que, com algumas modificações, funciona na maior parte dos países socialistas (deixo em aberto a questão da China, que não conheço). O problema político essencial para o intelectual não é criticar os conteúdos ideológicos que estariam ligados à ciência ou fazer com que sua prática científica seja acompanhada por uma ideologia justa; mas saber se é possível constituir uma nova política da verdade. O problema não é mudar a ‘consciência’ das pessoas, ou o que elas têm na cabeça, mas o regime político, econômico, institucional da produção da verdade.
Não se trata de libertar a verdade de todo o sistema de poder – o que seria quimérico na medida em que a própria verdade é poder – mas de desvincular o poder da verdade das formas de hegemonia (sociais, econômicas, culturais) no interior das quais ela funciona no momento. Em suma, a questão política não é o erro, a ilusão, a consciência alienada, ou a ideologia: é a própria verdade.
Microfísica do poder, editora Graal, p. 14