Texto para responder à questão.
O Dia da Consciência Negra
[...]
O assunto é delicado; em questão de raça,
deve-se tocar nela com dedos de veludo. Pode ser
que eu esteja errada, mas parece que no tema de
raça, racismo, negritude, branquitude, nós caímos
em preconceito igual ao dos racistas. O europeu
colonizador tem - ou tinha - uma lei: teve uma parte de
sangue negro - é negro. Por pequena que seja a gota
de sangue negro no indivíduo, polui-se a nobre linfa
ariana, e o portador da mistura é "declarado negro”. E
os mestiços aceitam a definição e - meiões,
quarteirões, octorões - se dizem altivamente
“negros", quando isso não é verdade. Ao se afirmar
“negro” o mestiço faz bonito, pois assume no total a
cor que o branco despreza. Mas ao mesmo tempo
está assumindo também o preconceito do branco
contra o mestiço. Vira racista, porque, dizendo-se
negro, renega a sua condição de mulato, mestiço,
half-breed, meia casta, marabá, desprezados pela
branquidade. Aliás, é geral no mundo a noção
exacerbada de raça, que não afeta só os brancos,
mas os amarelos, vermelhos, negros; todos
desprezam o meia casta, exemplo vivo da infração à
lei tribal.
Eu acho que um povo mestiço, como nós,
deveria assumir tranquilamente essa sua condição
de mestiço; em vez de se dizer negro por bravata, por
desafio - o que é bonito, sinal de orgulho, mas sinal de
preconceito também. Os campeões nossos da
negritude, todos eles, se dizem simplesmente
negros. Acham feio, quem sabe até humilhante, se
declararem mestiços, ou meio brancos, como na
verdade o são. “Black is beautiful” eu também acho.
Mas mulato é lindo também, seja qual for a dose da
sua mistura de raça. Houve um tempo, antes de se
desenvolver no mundo a reação antirracista, em que
até se fazia aqui no Rio o concurso “rainha das
mulatas”. Mas a distinção só valia para a mulata
jovem e bela. Preconceito também e dos péssimos,
pois a mulata só era valorizada como objeto sexual,
capaz de satisfazer a consciência dos homens.
A gente não pode se deixar cair nessa
armadilha dos brancos. A gente tem de assumir a
nossa mulataria. Qual brasileiro pode jurar que tem
sangue “puro” nas veias, - branco, negro, árabe,
japonês?
Vejam a lição de Gilberto Freyre, tão bonita.
Nós todos somos mestiços, mulatos, morenos, em
dosagens várias. Os casos de branco puro são
exceção {como os de índios puros - tais os
remanescentes de tribos que certos antropólogos
querem manter isolados, geneticamente puros -
fósseis vivos - para eles estudarem...). Não vale indagar se a nossa avó chegou aqui de caravela ou de
navio negreiro, se nasceu em taba de índio ou na
casa-grande. Todas elas somos nós, qualquer
procedência Tudo é brasileiro. Quando uma amiga
minha, doutora, participante ilustre de um congresso
médico, me declarou orgulhosa “eu sou negra” - não
resisti e perguntei: “Por que você tem vergonha de ser
mulata?” Ela quase se zangou. Mas quem tinha razão
era eu. Na paixão da luta contra a estupidez dos
brancos, os mestiços caem justamente na posição
que o branco prega: negro de um lado, branco do
outro. Teve uma gota de sangue africano é negro -
mas tendo uma gota de sangue branco será
declarado branco? Não é.
Ah, meus irmãos, pensem bem. Mulata,
mulato também são bonitos e quanto! E nós todos
somos mesmo mestiços, com muita honra, ou
morenos, como o queria o grande Freyre. Raça
morena, estamos apurando. Daqui a 500 anos será
reconhecida como “zootecnicamente pura" tal como
se diz de bois e de cavalos. Se é assim que eles
gostam!
QUEIROZ, Rachel. O Dia da Consciência Negra. O Estado de S.
Paulo, São Paulo, 23nov. 2002. Brasil, caderno 2, p. D16,
Vocabulário:
half-bread:mestiço.
marabá: mameluco.
meião, quarteirão e octorão: pessoas que têm,
respectivamente, metade, um quarto e um oitavo de
sangue negro.
“Black is beautiful”: “O negro é bonito
Rachel de Queiroz inicia o quarto parágrafo fazendo
referência ao escritor Gilberto Freyre, recorrendo a
um recurso comum a textos dissertativo s
argumentativos.
Esse recurso constitui um argumento de: