Não faz muito tempo, fui assistir à ópera "As Bodas de Figaro", de Mozart. Lá para o final, o personagem mais importante, Fígaro, faz um retrato cruel das mulheres. Diz: "Abram um pouco os olhos, homens incautos e bobos. Olhem essas mulheres, olhem o que elas são". Segue enumerando: "São bruxas que enfeitiçam para nos deixar sofrendo... São rosas espinhosas, raposas maliciosas, mestras de engano e de angústias, que fingem e mentem, que amor não sentem, não sentem piedade".
No século 18, quando essa ópera foi composta, a sala toda ficava iluminada. Não se deixava o público no escuro, como hoje. Os cantores podiam então interpelar diretamente a assistência. Na montagem que vi, o diretor de cena teve a ideia de acender as luzes da sala durante a ária de Fígaro, que saiu do palco e dirigiu-se diretamente aos homens presentes.
Quando ele passava pelo corredor entre o público, uma senhora furiosa levantou-se. Fez o sinal de "não" nas fuças do pobre cantor e retirou-se protestando em voz alta. De início, pensei que fosse parte do espetáculo - hoje em dia, com as montagens modernas, tudo é possível. Mas não, era uma feminista embravecida.
Ela poderia ter prestado mais atenção. O tema nuclear de "As Bodas de Fígaro" é atual: trata-se de desmascarar, denunciar e punir um poderoso aristocrata que é violento predador sexual.
Aquela senhora não deu tempo para a conclusão da ópera, não chegou a ver a condenação do conde brutal. Tal suscetibilidade, irritada pela situação em que, injustamente, as mulheres são mantidas em nossas sociedades, é compreensível. Levou-a a partir antes que as acusações de Fígaro contra o gênero feminino fossem desmentidas. Indignou -se cedo demais.
Indignação: eis o problema. Nunca tive simpatia por essa palavra. Pressupõe cólera e desprezo. Quando estamos sozinhos, a indignação nos embriaga como se fosse uma droga. Arrebata a alma, enfurece as vísceras, dilata os pulmões e nos faz acreditar na veemência do nosso ódio. Viramos heróis justiceiros diante de nós mesmos.
A solidão indignada faz grandes discursos interiores contra aquilo que erigimos como inimigo. Serve para dar boa consciência. É autossatisfatória. Um prazer solitário. Exaltados, arquitetamos vinganças e reparações. Depois, o balão murcha, sobrando apenas nossa miserável impotência.
Ao se manifestar na presença de outra pessoa, ou de duas, ou num pequeno grupo, a indignação leva ao descontrole. Nervosos, falamos alto e dizemos coisas que, na calma, jamais pronunciaríamos.
Quando um de seus heróis se deixa levar pelos discursos coléricos, Homero faz alguém sempre repreender: "Que palavras ultrapassaram a barreira de teus dentes!". Porque não somos mais nós que falamos, mas algo que está em nós e que ocupou nosso corpo esvaziado de qualquer poder reflexivo: a indignação. Assim também ocorre com os jorros furibundos de palavras que inundam as redes sociais.
A multidão indignada é, por sua vez, uma catástrofe. Tomada por um furacão de pulsões, ela atropela, esmaga, lincha. A indignação trava as forças racionais. Alimentada pelas paixões, usa uma aparência de razão como fole para soprar nas brasas. Está claro, aceita só argumentos que servem a reforçar e ampliar seu domínio. É feita de radicalismos.
Obs. ária: parte de uma ópera executada por voz solista.
(Adaptado de: COLI, Jorge. Folha de S.Paulo, 4 de fevereiro de 2018, A2)