SóProvas


ID
3021787
Banca
FCM
Órgão
Prefeitura de Guarani - MG
Ano
2019
Provas
Disciplina
Português
Assuntos

                                   Natal na barca


      Não quero nem devo lembrar aqui por que me encontrava naquela barca. Só sei que em redor tudo era silêncio e treva. E que me sentia bem naquela solidão. Na embarcação desconfortável, tosca, apenas quatro passageiros. Uma lanterna nos iluminava com sua luz vacilante: um velho, uma mulher com uma criança e eu.

      O velho, um bêbado esfarrapado, deitara-se de comprido no banco, dirigira palavras amenas a um vizinho invisível e agora dormia. A mulher estava sentada entre nós, apertando nos braços a criança enrolada em panos. Era uma mulher jovem e pálida. O longo manto escuro que lhe cobria a cabeça dava-lhe o aspecto de uma figura antiga.

      Pensei em falar-lhe assim que entrei na barca. Mas já devíamos estar quase no fim da viagem e até aquele instante não me ocorrera dizer-lhe qualquer palavra. Nem combinava mesmo com uma barca tão despojada, tão sem artifícios, a ociosidade de um diálogo. Estávamos sós. E o melhor ainda era não fazer nada, não dizer nada, apenas olhar o sulco negro que a embarcação ia fazendo no rio.

      Debrucei-me na grade de madeira carcomida. Acendi um cigarro. Ali estávamos os quatro, silenciosos como mortos num antigo barco de mortos deslizando na escuridão. Contudo, estávamos vivos. E era Natal.

      A caixa de fósforos escapou-me das mãos e quase resvalou para o rio. Agachei-me para apanhá-la. Sentindo então alguns respingos no rosto, inclinei-me mais até mergulhar as pontas dos dedos na água.

      — Tão gelada — estranhei, enxugando a mão.

      — Mas de manhã é quente.

      Voltei-me para a mulher que embalava a criança e me observava com um meio sorriso. Sentei-me no banco ao seu lado. Tinha belos olhos claros, extraordinariamente brilhantes. Reparei em que suas roupas (pobres roupas puídas) tinham muito caráter, revestidas de uma certa dignidade.

      — De manhã esse rio é quente — insistiu ela, me encarando.

      — Quente?

      — Quente e verde, tão verde que a primeira vez que lavei nele uma peça de roupa pensei que a roupa fosse sair esverdeada. É a primeira vez que vem por estas bandas?

      Desviei o olhar para o chão de largas tábuas gastas. E respondi com uma outra pergunta:

      — Mas a senhora mora aqui por perto?

      — Em Lucena. Já tomei esta barca não sei quantas vezes, mas não esperava que justamente hoje…

      A criança agitou-se, choramingando. A mulher apertou-a mais contra o peito. Cobriu-lhe a cabeça com o xale e pôs-se a niná-la com um brando movimento de cadeira de balanço. Suas mãos destacavam-se exaltadas sobre o xale preto, mas o rosto era tranquilo.

      — Seu filho?

      — É. Está doente, vou ao especialista, o farmacêutico de Lucena achou que eu devia ver um médico hoje mesmo. Ainda ontem ele estava bem, mas piorou de repente. Uma febre, só febre…

      — Levantou a cabeça com energia. O queixo agudo era altivo, mas o olhar tinha a expressão doce. — Só sei que Deus não vai me abandonar.

      — É o caçula?

      — É o único. O meu primeiro morreu o ano passado. Subiu no muro, estava brincando de mágico quando de repente avisou, vou voar! E atirou-se. A queda não foi grande, o muro não era alto, mas caiu de tal jeito… Tinha pouco mais de quatro anos.

      Atirei o cigarro na direção do rio, mas o toco bateu na grade e voltou, rolando aceso pelo chão. Alcancei-o com a ponta do sapato e fiquei a esfregá-lo devagar. Era preciso desviar o assunto para aquele filho que estava ali, doente, embora. Mas vivo.

      — E esse? Que idade tem?

      — Vai completar um ano. — E, noutro tom, inclinando a cabeça para o ombro: — Era um menino tão alegre. Tinha verdadeira mania com mágicas. Claro que não saía nada, mas era muito engraçado… Só a última mágica que fez foi perfeita, vou voar! disse abrindo os braços. E voou.

      Levantei-me. Eu queria ficar só naquela noite, sem lembranças, sem piedade. Mas os laços (os tais laços humanos) já ameaçavam me envolver. Conseguira evitá-los até aquele instante. Mas agora não tinha forças para rompê-los.

      — Seu marido está à sua espera?

      — Meu marido me abandonou.

      Sentei-me e tive vontade de rir. Era incrível. Fora uma loucura fazer a primeira pergunta, mas agora não podia mais parar.

      — Há muito tempo? Que seu marido…

      — Faz uns seis meses. Imagine que nós vivíamos tão bem, mas tão bem. Quando ele encontrou por acaso essa antiga namorada, falou comigo sobre ela, fez até uma brincadeira, a Ducha enfeiou, de nós dois fui eu que acabei ficando mais bonito... E não falou mais no assunto. Uma manhã ele se levantou como todas as manhãs, tomou café, leu o jornal, brincou com o menino e foi trabalhar. Antes de sair ainda me acenou, eu estava na cozinha lavando a louça e ele me acenou através da tela de arame da porta, me lembro até que eu quis abrir a porta, não gosto de ver ninguém falar comigo com aquela tela no meio… Mas eu estava com a mão molhada. Recebi a carta de tardinha, ele mandou uma carta. Fui morar com minha mãe numa casa que alugamos perto da minha escolinha. Sou professora.

      Fixei-me nas nuvens tumultuadas que corriam na mesma direção do rio. Incrível. Ia contando as sucessivas desgraças com tamanha calma, num tom de quem relata fatos sem ter realmente participado deles. Como se não bastasse a pobreza que espiava pelos remendos da sua roupa, perdera o filhinho, o marido e ainda via pairar uma sombra sobre o segundo filho que ninava nos braços. E ali estava sem a menor revolta, confiante. Intocável. Apatia? Não, não podiam ser de uma apática aqueles olhos vivíssimos, aquelas mãos enérgicas. Inconsciência? Uma obscura irritação me fez andar.

      [...]

TELLES, Lygia Fagundes. Antes do baile verde. 7 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982, p. 74-76. Fragmento. 

“A criança agitou-se(1), choramingando. A mulher apertou-a(2) mais contra o peito. Cobriu-lhe a cabeça com o xale e pôs-se(3) a niná-la(4) com um brando movimento de cadeira de balanço.”


Com relação à colocação pronominal, apenas a ênclise é possível no pronome destacado de número

Alternativas
Comentários
  • GABARITO: LETRA D

    “A criança agitou-se(1), choramingando. A mulher apertou-a(2) mais contra o peito. Cobriu-lhe a cabeça com o xale e pôs-se(3) a niná-la(4) com um brando movimento de cadeira de balanço.”

    → 1 e 2 → temos um sujeito explícito com núcleo substantivo, dessa forma a colocação é facultativa, próclise ou ênclise (se agitou ou agitou-se);

    → 3 → Cobriu-lhe a cabeça com o xale e pôs-se → conjunção coordenativa aditiva, antes do verbo, sem palavra atrativa é caso de facultatividade; próclise (se pôs) ou ênclise (pôs-se);

    → 4 → nossa resposta → os pronomes oblíquos -lo(s), -la(s) virão sempre em posição enclítica aos infinitivos não flexionados da preposição "a" (em verde), dessa forma não poderia ocorrer a próclise, até mesmo por sinal de lógica, ficaria: e pôs-se a a ninar (sem sentido algum).

    FORÇA, GUERREIROS(AS)!! ☻

  • A julgar pela percentagem de erro, acredito que muitos não entenderam plenamente o enunciado, que solicita qual pronome deve ser posto somente na posição enclítica, isto é, após o verbo. O pronome que atende ao pedido do enunciado é o sinalizado pelo número quatro. Em todos os demais, pode-se, indiferentemente, aplicar próclise ou ênclise.

    Letra D

  • Verbos no infinitivo impessoal regidos pela preposição "a" = uso obrigatório de ênclise.

  • CASOS FACULTATIVOS:

    1-Substantivos: O garoto se machucou ou O garoto machucou-se.

    2- Pronomes Pessoais e Demostrativos: Ele me agradou ou Eles agradou-me/ Isto agrada-me ou Isto me agrada.

    3- Conjunções Coordenativa: Falou pouco, mas se casou ou Falou pouco, mas casou-se.

  • vlw Arthur, pela contribuição.

  • Verbos no infinitivo impessoal regidos pela preposição "a" = uso obrigatório de ênclise.

    os pronomes oblíquos -lo(s), -la(s) virão sempre em posição enclítica aos infinitivos IMPESSOAIS(não flexionados) ANTECEDIDOS da preposição "A", dessa forma não poderia ocorrer a próclise, até mesmo por sinal de lógica, ficaria: e pôs-se a a ninar (sem sentido algum).

    Cobriu-lhe a cabeça com o xale e pôs-se a niná-la com um brando movimento de cadeira de balanço.”

  • Boa resposta, Alexandre.

  •  apenas a ênclise 

  • Os POAs ''-lo, -la, -los, -las'' virão sempre enclíticos aos infinitivos não flexionados antecedidos da preposição a.

  • "Pôs-se" é considerado início de uma nova oração, e portanto ênclise obrigatória?

  • Preposição “A” + verbo no infinitivo = uso obrigatório de ênclise.