- ID
- 3519382
- Banca
- VUNESP
- Órgão
- Prefeitura de São José dos Campos - SP
- Ano
- 2019
- Provas
- Disciplina
- Português
- Assuntos
Leia o texto para responder a questão.
A entrevista estava marcada na casa dele, numa das
favelas mais pobres de Fortaleza. De manhã bem cedo, eu
e o fotógrafo esperávamos, na porta de uma ONG ainda
fechada, o educador que nos levaria até aquele emaranhado de endereços desencontrados, um território dividido por
duas quadrilhas rivais do tráfico de drogas. O menino apareceu de repente, vestido com uma camiseta do Brasil. Sem
olhar para mim, ele disse: “Na minha casa, não.” Não dizia
o porquê. Apenas sacudia a cabeça em sinal de negativa
explícita. Ele era pequeno para os seus 15 anos, mas o seu
“não” era enorme.
A porta da ONG abriu, e ele entrou. Sentou-se na
cadeira da recepção e tentou ligar o computador. Passou-se
muito tempo, talvez quase uma hora de silêncios entre nós,
interrompidos por uma ou outra palavra que servia ao menino
apenas como demarcação do território. O território que ele
não queria que eu alcançasse, as palavras curtas marcando
que não haveria palavras longas. Eu não sabia se tinha o
direito de continuar ali, talvez nunca saiba. Mas ele também
não ia embora.
Então a cozinha da ONG abriu. E, de um salto, ele já
estava lá. Como se eu fosse um vira-lata esquecido, me chamou com displicência. Mas ainda não me olhava. Sentei-me
diante dele e o vi devorar um pão em menos de um minuto.
No segundo pão, ele me enxergou pela primeira vez, oferecendo-me um pedaço. A certa altura, parecendo com pena
de mim, disse:
– Você entende só um pouco de português, né?
O menino tinha razão. Eu não alcançava a riqueza da
sua língua portuguesa, que dava conta de um Brasil diverso,
com palavras nascidas ali mesmo. Expressões gestadas
na necessidade de dar conta de uma realidade na qual era
necessário, por exemplo, nomear o momento-limite em que o
gatilho da arma é acionado, mas a bala não sai.
Mas era mais do que isso. Eu demorei a lê-lo. Eu era
analfabeta dele. O seu “não” da altura de um edifício, a
postura do seu corpo, entre acuada e pronta para saltar no
meu pescoço, o seu medo de mim, que às vezes beirava a
raiva, era fome. Frequentemente me deparei com essa fome,
a fome que é um substantivo sem adjetivo possível.
O menino me leu muito antes de eu a ele. Percebeu que
eu era estrangeira ao seu Brasil. Estranhou a cor da minha
pele, a tonalidade do meu cabelo, a forma e o som das minhas palavras. Estranhou que eu precisasse de tradução
para algumas de suas frases. Estranhou porque havia que
estranhar.
(Eliane Brum. Limites da linguagem.
https://brasil.elpais.com, 04.08.2014. Adaptado)
No contexto em que se encontram, os vocábulos “explícita” e “displicência”, em destaque no texto, apresentam
como antônimo e sinônimo, respectivamente