Texto para a questão.
O Repertório e o Mercado
O repertório de obras de arte atualmente servido ao público está deteriorado. Grande é o número de artistas que finge ignorar este fato: esta
ignorância, verdadeira ou fingida, é crime. Em teatro, são criminosos os elencos cuja preocupação principal consiste em quitandeiramente
ganhar alguns cobres servindo aos apetites mais rasteiros das plateias tranquilas; são criminosos todos aqueles que servilmente ficam atentos à
última moda parisiense, ao último lançamento londrino, isto é, aqueles que renunciam à sua cidadania artística brasileira e se transformam em
repetidores da arte alheia; são criminosos aqueles que apresentam sempre e apenas visões róseas do mundo através de universos feéricos das
peças de boulevard, ou do psicologismo anglo-saxônico que tende a reduzir os mais graves problemas sociais e políticos a desajustes neuróticos
de uns poucos cidadãos.
São criminosos os fabricantes irresponsáveis de comedietas idiotas que, segundo a publicidade, “até parecem italianas." Estes são criminosos e
não são artistas porque arte é sempre a manifestação sensorial da verdade e não estará dizendo a verdade o artista que constantemente ignore
a guerra de genocídio do Vietnã, que ignore o lento assassinato pela fome de milhões de brasileiros no Norte, no Sul, no Centro, no Nordeste e
no Centro-Oeste—estas são verdades nacionais e humanas que nenhuma mensagem presidencial, por mais esperta que seja, fará esquecer.
Por que são tantos os grupos teatrais que se dedicam ao teatro apodrecido, ao teatro da mentira, corruptor? Tirante os pulhas por convicção,
existem também os pulhas por comodismo. Os primeiros acreditam na conquista do mercado ainda que para isso seja necessário produzir "sob
medida" para o rápido consumo. (...) O mercado é o demiurgo da arte—este lugar comum já foi destruído (...) entre o artista e o consumidor,
numa sociedade capitalista, insere-se o mediador-capital, o mediado-patrocinador. O dinheiro, este sim, é o verdadeiro demiurgo do gosto
artístico posto em prática.
O mercado consumidor de teatro é, em última análise, o fator determinante do conteúdo e da forma da obra de arte, da arte-mercadoria. E esse
mercado, nos principais centros urbanos do país, é formado pela alta classe média, e daí para cima. O povo e a sua temática estão
aprioristicamente excluídos. Este fato grave tem deformado a perspectiva criadora da maioria dos nossos artistas, que se atrelam aos desejos
mais imediatos de "corte burguesa," da qual se tornam servis palhaços, praticando um teatro de classe, isto é, um teatro da classe proprietária,
da classe opressora. A consequência lógica é uma arte de opressão.
Adaptado de BOAL, Augusto. “Que Pensa Você da Arte de Esquerda?”. Latin American Theatre Review. Primavera de 1970, p. 46-47.
No trecho “Em teatro, são criminosos os elencos cuja preocupação principal consiste em quitandeiramente
ganhar alguns cobres servindo aos apetites mais rasteiros das plateias tranquilas (...)” o termo
“quitandeiramente” se refere a: