Leia o trecho do conto-prefácio “Hipotrélico”, que integra o livro Tutameia, de João
Guimarães Rosa.
Há o hipotrélico. O termo é novo, de impesquisada origem e ainda sem definição que lhe apanhe em todas as pétalas o significado. Sabe-se, só, que vem do bom português.
Para a prática, tome-se hipotrélico querendo dizer: antipodático, sengraçante imprizido; ou, talvez, vice-dito: indivíduo pedante, importuno agudo, falto de respeito para com a opinião
alheia. Sob mais que, tratando-se de palavra inventada, e,
como adiante se verá, embirrando o hipotrélico em não tolerar neologismos, começa ele por se negar nominalmente a
própria existência.
Somos todos, neste ponto, um tento ou cento hipotrélicos? Salvo o excepto, um neologismo contunde, confunde,
quase ofende. Perspica-nos a inércia que soneja em cada
canto do espírito, e que se refestela com os bons hábitos
estadados. Se é que um não se assuste: saia todo-o-mundo
a empinar vocábulos seus, e aonde é que se vai dar com a
língua tida e herdada? Assenta-nos bem à modéstia achar
que o novo não valerá o velho; ajusta-se à melhor prudência
relegar o progresso no passado. [...]
Já outro, contudo, respeitável, é o caso — enfim — de
“hipotrélico”, motivo e base desta fábula diversa, e que vem
do bom português. O bom português, homem-de-bem e muitíssimo inteligente, mas que, quando ou quando, neologizava, segundo suas necessidades íntimas.
Ora, pois, numa roda, dizia ele, de algum sicrano, terceiro, ausente:
— E ele é muito hiputrélico...
Ao que, o indesejável maçante, não se contendo, emitiu
o veto:
— Olhe, meu amigo, essa palavra não existe.
Parou o bom português, a olhá-lo, seu tanto perplexo:
— Como?!... Ora... Pois se eu a estou a dizer?
— É. Mas não existe.
Aí, o bom português, ainda meio enfigadado, mas no tom
já feliz de descoberta, e apontando para o outro, peremptório:
— O senhor também é hiputrélico...
E ficou havendo.
(Tutameia, 1979.)
O efeito cômico do texto deriva, sobretudo, da ambiguidade
da expressão