A palavra sonho, do latim somnium, significa muitas coisas diferentes, todas vivenciadas durante a vigília, e não
durante o sono. Realizei “o sonho da minha vida”, “meu sonho de consumo” são frases usadas cotidianamente pelas
pessoas para dizer que pretendem ou conseguiram alcançar
algo. Todo mundo tem um sonho, no sentido de plano futuro.
Todo mundo deseja algo que não tem. Por que será que o
sonho, fenômeno normalmente noturno que tanto pode evocar o prazer quanto o medo, é justamente a palavra usada
para designar tudo aquilo que se quer ter?
O repertório publicitário contemporâneo não tem dúvidas
de que o sonho é a força motriz de nossos comportamentos.
Desejo é o sinônimo mais preciso da palavra “sonho”. [...] Na
área de desembarque de um aeroporto nos Estados Unidos,
uma foto enorme de um casal belo e sorridente, velejando
num mar caribenho em dia ensolarado, sob a frase enigmática: “Aonde seus sonhos o levarão?”, embaixo o logotipo da
empresa de cartão de crédito. Deduz-se do anúncio que os
sonhos são como veleiros, capazes de levar-nos a lugares
idílicos, perfeitos, altamente… desejáveis. As equações “sonho é igual a desejo que é igual a dinheiro” têm como variável
oculta a liberdade de ir, ser e principalmente ter, liberdade que até os mais miseráveis podem experimentar no mundo
de regras frouxas do sonho noturno, mas que no sonho diurno é privilégio apenas dos detentores de um mágico cartão
plástico.
A rotina do trabalho diário e a falta de tempo para dormir
e sonhar, que acometem a maioria dos trabalhadores, são
cruciais para o mal-estar da civilização contemporânea. É gritante o contraste entre a relevância motivacional do sonho e
sua banalização no mundo industrial globalizado. [...] A indústria da saúde do sono, um setor que cresce aceleradamente,
tem valor estimado entre 30 bilhões e 40 bilhões de dólares.
Mesmo assim a insônia impera. Se o tempo é sempre escasso, se despertamos diariamente com o toque insistente do
despertador, ainda sonolentos e já atrasados para cumprir
compromissos que se renovam ao infinito, se tão poucos se
lembram que sonham pela simples falta de oportunidade de
contemplar a vida interior, quando a insônia grassa e o bocejo
se impõe, chega-se a duvidar da sobrevivência do sonho.
E, no entanto, sonha-se. Sonha-se muito e a granel,
sonha-se sofregamente apesar das luzes e dos ruídos da cidade, da incessante faina da vida e da tristeza das perspectivas. Dirá a formiga cética que quem sonha assim tão livre é o
artista, cigarra de fábula que vive de brisa. [...] Na peça teatral
A vida é sonho, o espanhol Pedro Calderón de la Barca dramatizou a liberdade de construir o próprio destino. O sonho é
a imaginação sem freio nem controle, solta para temer, criar,
perder e achar.
(O oráculo da noite: a história e a ciência do sonho, 2019.)
A palavra sublinhada em “Se o tempo é sempre escasso, se
despertamos diariamente” (3o
parágrafo) pertence à mesma
classe gramatical da palavra sublinhada em