Entrevista com Mia Couto
Prestes a completar 62 anos, o escritor moçambicano
Mia Couto é uma das poucas pessoas no mundo capaz
de juntar com beleza e propriedade assuntos que vão
da medicina à ecologia, da biologia à poesia, da prosa
à política.
Quais seus principais interesses como cientista?
Sou biólogo e ecologista. O que me fascina é a fronteira entre a descoberta científica e a margem de mistério que sempre subsiste. Mas sobretudo a Biologia
me ajudou a repensar-me como pessoa solidária e
de identidades partilhadas. A Biologia ensinou-me a
entender outras linguagens, ensinou-me a fala das
árvores, a fala dos que não falam. Hoje em nenhum
lugar me sinto uma criatura solitária. Mais do que
tudo ela me trouxe a saúde de pensar que faço parte
de uma epopeia partilhada por milhões de criaturas, e
nessa antiga saga não existe nunca um ator principal.
De que maneira a ciência ajuda na sua obra literária e vice-versa?
Confirmei na ciência o que suspeitava como poeta:
a certeza de um parentesco perdido com o mundo
natural, seja ele tido como vivo ou inorgânico. Não
imaginamos, nós seres humanos, o quanto somos
feitos de material não humano. E mesmo nesse lugar
sagrado onde se acreditava estar registrado o nosso
pedigree distinto de todas as outras espécies, mesmo
no nosso genoma mora a vida inteira.
As palavras que existem na língua portuguesa já
não bastam para expressar o que se quer?
Os idiomas são entidades vivas e raramente são os
escritores que criam mudanças que se tornam registro corrente. São as pessoas comuns. Não podemos
abdicar do direito (e sobretudo do prazer) de sermos
coprodutores desse corpo social. Não se trata de
uma questão literária. Mas da possibilidade de ver
no idioma um modo de assumirmos uma identidade
solidária e coletiva e em permanente construção.
Qual sua palavra favorita (inventada ou existente)
e o que ela tem de especial?
Um dia um desconhecido num aeroporto em
Moçambique abordou-me para me dizer que queria
oferecer uma palavra. Estranhei mas ele explicou-se:
era um engenheiro de obras e numa certa ocasião teve que chamar a atenção de um operário sobre algo
que não estava bem feito. E o homem respondeu:
esta é uma coisa “improvisória”. Este termo é genial.
Porque reúne muito do que somos em Moçambique
(e possivelmente no Brasil): improvisamos na lógica do
provisório. Numa única palavra se exprime um modo
de uma cultura se dizer a si mesma.
Como conduzir o leitor entre o real e o imaginário
sem confundi-lo?
Talvez o leitor precise mesmo de ficar confuso, de
perder o pé e ser convidado a procurar um novo chão.
Se a obra de arte não fizer isso ela não cumpre a sua
função de nos conduzir a uma viagem, a saltar fronteiras e a desobedecer certezas. E talvez seja necessário
questionar essa construção de literatura do “mágico” e
do “fantástico”. Não existe literatura que não caminhe
com um pé no fantástico e outro no real.
PEREIRA, C.; MASSON, C. Revista Isto É. Edição 15/06/2017 - nº 2479.
Disponível em: <https://istoe.com.br/teremos-que-inventar-um-ou-tro-modo-de-fazer-politica/#> [Adaptado]. Acesso: 05/set/2018.
Identifique abaixo as afirmativas verdadeiras ( V )
e as falsas ( F ), de acordo com o texto.
( ) Mia Couto aproxima seu universo literário ao
mundo interligado da ecologia e biologia, o
que se evidencia pela construção “epopeia partilhada por milhões de criaturas”. (1ª resposta)
( ) Para Mia Couto, a ciência ainda conserva um
lado de mistério e enigma.
( ) A mudança das línguas, segundo Mia Couto,
ocorre geralmente em decorrência dos usos
feitos pelas pessoas comuns e não de motivações literárias, sendo os escritores tidos como
coprodutores.
( ) O escritor africano reforça a dicotomia entre
vida racional e irracional, o que fica claro com
a construção “mesmo no nosso genoma mora
a vida inteira”.
( ) Mia Couto vincula o idioma a uma identidade
coletiva, compartilhada e mutável.
Assinale a alternativa que indica a sequência correta,
de cima para baixo.