SóProvas


ID
5433322
Banca
PM-MG
Órgão
PM-MG
Ano
2021
Provas
Disciplina
Português
Assuntos

Mesmo?


    Há alguns anos, namorei um professor de Direito e procurador-geral da União (do tipo com mestrado, doutorado, pós-doutorado e mil especializações) cujo apreço pela língua portuguesa chegava a ser irritante até para mim. Não sei se por implicância ou por exibicionismo, esse homem, nos nossos momentos de brigas (que não eram poucos; afinal, éramos mais possessivos do que todos os pronomes possessivos juntos), tentava, de todas as formas, mostrar que dominava a última flor do Lácio, vulgo língua portuguesa, mais do que eu. E o que acontecia? Eu ficava tão irritada com a situação que sempre perdia no quesito argumentação.

    Certa vez, após almoçarmos em uma tarde de sábado, ele foi para a minha casa. Enquanto esperávamos pelo elevador, eu comentei:

    — Ainda chegará o dia em que todas essas placas de aviso de elevadores serão corrigidas. Aff!

    — Oi?

    — Você nunca reparou? “Antes de entrar no elevador, verifique se o mesmo se encontra parado neste andar. ”

    — E daí?

    — E daí que a palavra “mesmo” não pode retomar outra palavra, como elevador.

    — Claro que pode! “Mesmo” é um pronome demonstrativo. Está demonstrando onde devemos ou não entrar.

    — Realmente, “mesmo” pode atuar como pronome demonstrativo, mas ele retoma uma oração, não uma palavra, Maurício.

      — Exemplo?

    — Eu sou uma namorada fiel; por isso espero que o meu namorado faça o mesmo. Viu? Recupera-se, aí, a oração sobre fidelidade.

    — Isso é uma indireta, Cíntia?

    — Não, é direta mesmo.

    — E esse “mesmo” de agora?

    — É um advérbio com valor reforçativo, Maurício. Ele reforça quão galinha você é. O elevador chegou. Vamos.

    — Mesmo? Hahaha...

     — Não fuja do assunto. Estou cansada das suas ciscadas por aí.

    Chegando, eu retirei as minhas roupas e coloquei um roupão. Ele tirou os sapatos, como quem mostra que vai ficar, mas recebeu um telefonema sei lá de quem e prontamente respondeu:

     — Claro que vou. Em dez minutos estarei aí.

     — Oi??? Você vai me deixar aqui mesmo?

     — E esse “mesmo”?

     — Equivale à palavra “realmente” e ao provável término do nosso namoro se você sair daqui.

    Perguntei para ele de quem se tratava, mas Maurício desconversou. Disse que eu não conhecia a pessoa em questão, que ele precisava “dar uma passada” no tal lugar, que eu não iria gostar do barzinho, blá-blá-blá... E começou a ladainha linguisticamente ortodoxa comum aos discursos que ele ensaiava nas nossas brigas:

    — Cíntia, eu sou um homem de conduta ilibada, de quem você não pode duvidar. E você é a mulher pela qual sou apaixonado. Você tem tudo quanto quer de mim e ainda assim sempre duvida dos lugares onde digo que estou.

    — É mesmo? Fiquei lisonjeada...

    — Esse “mesmo” foi irônico. Não admito ironias sobre a minha fidelidade.

    — Maurício, você não me engana. Eu ouvi voz de mulher. Quem está lá? Quantas mulheres são? De onde é esse amigo misterioso do qual eu nunca ouvi falar? Aposto que é aniversário de mulher, por isso você não quer me levar. Não é? Você já estava distante na hora do almoço. Eu senti!

    — Não me venha, Cíntia Chagas (ele sempre me chamava de Cíntia Chagas durante as brigas), com o seu discurso falacioso! Sou um namorado de cuja fidelidade você não pode duvidar. Quer saber? Vou embora. Passar bem. E saiu correndo do meu apartamento.

    E eu saí correndo atrás dele, afinal de contas, ele tinha de me ouvir. Mas o caso é que eu estava de roupão e não me lembrei desse detalhe. Pois bem: vi-me de roupão, no meio da rua, brigando com o Senhor Sabe-Tudo. Cena de novela: atirei-me na frente do carro dele e disse:

    — Daqui você não sai.

    Ele, frio como um iceberg, respondeu:

    — Só se você me disser que “mesmo” substitui palavra, que estou certo.

    — Maurício, não me irrite! Já expliquei que “mesmo” não substitui palavra e ponto final.

    — Ele, divertindo-se com a situação, disse:

    — Então, como ficaria a placa do elevador, Rainha da Língua Portuguesa?

    — “Antes de entrar no elevador, verifique se este se encontra parado neste andar”. Pronto, Maurício. Agora saia do carro. Os vizinhos já estão olhando. Não vê que estou de roupão?

    — É mesmo? Coitadinha... Isso é para você aprender a não desconfiar de mim.

    Deu ré e foi embora.

    Então eu fiquei ali, na rua, de roupão, sem a chave do portão do prédio, à espera de um vizinho com quem eu pudesse contar.

    E você, leitor, neste momento pergunta a si mesmo: mesmo? De roupão na rua?

    Mesmo...

CHAGAS, Cíntia. Sou péssimo em português: chega de sofrimento! Aprenda as principais regras de português dando boas risadas. 1 ed. Rio de Janeiro: HarperColllins, 2018.

Assinale a opção CORRETA. A situação que dá origem aos acontecimentos (conflito) no conto “Mesmo?” é:

Alternativas
Comentários
  • GABARITO - B

    Lendo a texto podemos perceber que a palavra "mesmo" inicia todo o conflito.

    -E daí que a palavra “mesmo” não pode retomar outra palavra, como elevador.

    Resposta dada pela banca CRS - O texto em lide trata-se de um conto. Como tal é uma narrativa curta que apresenta os mesmos elementos do romance: narrador, personagens, enredo, espaço e tempo. Diferencia-se do romance pela sua concisão, linearidade e unidade: o conto deve construir uma história focada em um conflito básico e apresentar o desenvolvimento e a resolução desse conflito. No conto “Mesmo?” o conflito se inicia quando os personagens, em uma tarde de sábado, após almoçarem e enquanto aguardavam pelo elevador a personagem protagonista comentou sobre uma placa de aviso de elevadores na qual estava escrito: “Antes de entrar no elevador, verifique se o mesmo se encontra parado neste andar.”, ou seja, o emprego inadequado da palavra “mesmo” na placa de aviso do elevador.

    https://www.policiamilitar.mg.gov.br/conteudoportal/uploadFCK/crs/22092021213725367.pdf

  • Belo texto, mas não sabia que fazia tanta analogia com meu relacionamento kkkkk....

  • A questão requer compreensão textual e conhecimentos sobre coesão referencial.

    Alternativa (A) incorreta - No primeiro parágrafo, a narrada até afirma que eles são possessivos, motivo de eles brigarem muito. Entretanto, não é isso que dá origem ao conflito no conto “Mesmo?".

    Alternativa (B) correta - O que dá origem ao conflito neste conto é o emprego inadequado da palavra “mesmo" na placa de aviso do elevador, pois, a partir disso, a narradora começa a “jogar indireta" sobre seu relacionamento com o personagem Maurício, e este não admite estar errado em relação ao seu conhecimento sobre o uso de “mesmo" na placa de aviso do elevador.


    Alternativa (C) incorreta - Isso até aborrece a narradora, mas não chega ser o fato o qual dá origem ao conflito.

    Alternativa (D) incorreta - A frase do elevador não está conforme a norma culta da Língua Portuguesa, uma vez que a palavra “mesmo" não pode se referir a uma palavra anteriormente mencionada, ela só pode retomar uma ação mencionada.
     

    Gabarito da professora: Letra B.

  • "TUDO POSSO NAQUELE QUE ME FORTALECE"

    #PMMG

    B

    O conflito não inicia por causa dos dois serem possessivos "nos nossos momentos de brigas (que não eram poucos; afinal, éramos mais possessivos do que todos os pronomes possessivos juntos)", mas inicia-se pelo emprego do "mesmo" na placa do elevador"Ainda chegará o dia em que todas essas placas de aviso de elevadores serão corrigidas. Aff! "