SóProvas


ID
570004
Banca
FCC
Órgão
BACEN
Ano
2006
Provas
Disciplina
Português
Assuntos

                                   O segredo da acumulação primitiva neoliberal         

          Numa coluna publicada na Folha de São Paulo, o jornalista Elio Gaspari evocava o drama recente de um navio de crianças escravas errando ao largo da costa do Benin. Ao ler o texto – que era inspirado , o navio tornava-se uma metáfora de toda a África subsaariana: ilha à deriva, mistura de leprosário com campo de extermínio e reserva de mão-de-obra para migrações desesperadas.

           Elio Gaspari propunha um termo para designar esse povo móvel e desesperado: “os cidadãos descartáveis”. “Massas de homens e mulheres são arrancados de seus meios de subsistência e jogados no mercado de trabalho como proletários livres, desprotegidos e sem direitos.” São palavras de Marx, quando ele descreve a “acumulação primitiva”, ou seja, o processo que, no século XVI, criou as condições necessárias ao surgimento do capitalismo.

          Para que ganhássemos nosso mundo moderno, foi necessário, por exemplo, que os servos feudais fossem, à força, expropriados do pedacinho de terra que podiam cultivar para sustentar-se. Massas inteiras se encontraram, assim, paradoxalmente livres da servidão, mas obrigadas a vender seu trabalho para sobreviver

          Quatro ou cinco séculos mais tarde, essa violência não deveria ter acabado? Ao que parece, o século XX pediu uma espécie de segunda rodada, um ajuste: a criação de sujeitos descartáveis globais para um capitalismo enfim global.

          Simples continuação ou repetição? Talvez haja uma diferença – pequena, mas substancial – entre as massas do século XVI e os migrantes da globalização: as primeiras foram arrancadas de seus meios de subsistência, os segundos são expropriados de seu lugar pela violência da fome, por exemplo, mas quase sempre eles recebem em troca um devaneio. O protótipo poderia ser o prospecto que, um século atrás, seduzia os emigrantes europeus: sonhos de posse, de bem-estar e de ascensão social.

          As condições para que o capitalismo invente sua versão neoliberal são subjetivas. A expropriação que torna essa passagem possível é psicológica: necessita que sejamos arrancados nem tanto de nossos meios de subsistência, mas de nossa comunidade restrita, familiar e social, para sermos lançados numa procura infinita de status (e, hipoteticamente, de bem-estar) definido pelo acesso a bens e serviços. Arrancados de nós mesmos, deveremos querer ardentemente ser algo além do que somos.

          Depois da liberdade de vender nossa força de trabalho, a “acumulação primitiva” do  neoliberalismo nos oferece a liberdade de mudar e subir na vida, ou seja, de cultivar visões, sonhos e devaneios de aventura e sucesso. E, desde o prospecto do emigrante, a oferta vem se aprimorando. A partir dos anos 60, a televisão forneceu os sonhos para que o campo não só
devesse, mas quisesse, ir para a cidade.

          O requisito para que a máquina neoliberal funcione é mais refinado do que a venda dos mesmos sabonetes ou filmes para todos. Trata-se de alimentar um sonho infinito de perfectibilidade
e, portanto, uma insatisfação radical. Não é pouca coisa: é necessário promover e vender objetos e serviços por eles serem indispensáveis para alcançarmos nossos ideais de status, de bem-estar e de felicidade, mas, ao mesmo tempo, é preciso que toda satisfação conclusiva permaneça impossível.

          Para fomentar o sujeito neoliberal, o que importa não é lhe vender mais uma roupa, uma cortina ou uma lipoaspiração; é alimentar nele sonhos de elegância perfeita, casa perfeita e corpo perfeito. Pois esses sonhos perpetuam o sentimento de nossa inadequação e garantem, assim, que ele seja parte inalterável, definidora, da personalidade contemporânea.

          Melhor deixar como está. No entanto, a coisa não fica bem. Do meu pequeno observatório psicanalítico, parece que o permanente sentimento de inadequação faz do sujeito neoliberal
uma espécie de sonhador descartável, que corre atrás da miragem de sua felicidade como um trem descontrolado, sem condutor, acelerando progressivamente por inércia – até que os
trilhos não agüentem mais.

(Contardo Calligaris, Terra de ninguém. São Paulo: Publifolha, 2002)


Na proposta de uma nova redação para uma frase do texto, cometeu-se um deslize quanto à concordância verbal em:

Alternativas
Comentários
  • Letra D

    Deve-se notar,..., um quadro de semelhanças...

  • Na oração principal:

    Devem-se notar (...) um quadro de semelhanças que não exclui uma importante diferença.

    O uso do "se" com um verbo isolado na frente da oração pode dar a impressão errada de que se trata de uma oração de sujeito indeterminado. Ora, não  existe tal possibilidade, até porque em orações de sujeito indeterminado o verbo deveria estar no singular.

    Para saber a real função do "se", deve descobrir a transitividade do verbo. Quem deve, deve ALGO. Portanto trata-se de um verbo transitivo direto.
    Quando o "se" acompanha um verbo transitivo direto ou transitivo direto e indireto, ele tem função de pronome apassivador. Por isso a frase pode também ser escrita da seguinte maneira:

    Devem ser notados um quadro de semelhanças que não exclui uma importante diferença.

    Desta forma fica claro que a concordância verbal não foi adequada na frase, pois o sujeito da oração (um quadro) é singular.

    Resposta letra D
  • Na proposta de uma nova redação para uma frase do texto, cometeu-se um deslize quanto à concordância verbal em:

     

    a) Não teriam sido suficientes quatro ou cinco séculos (sujeito) para que se extinguissem de vez as manifestações de violência principiadas no século XVI (sujeito)? b) Fez-se necessária não só a criação(sujeito), mas também a multiplicação de sujeitos descartáveis para que se caracterizassem as condições de um capitalismo globalizado(sujeito). c) Vendam-se os mesmos sabonetes ou filmes para todos (sujeito), o principal requisito dos procedimentos neoliberais vai além disso, e atende a exigências que são de alta sofisticação. d) Devem-se Deve-se notar, comparando-se as massas do século XVI e os migrantes da globalização, um quadro de semelhanças (sujeito)que não exclui uma importante diferença. e) Ao nos agraciar com sonhos de perfectibilidade, a máquina liberal(sujeito) inclui entre seus segredos estratégicos o sentimento da insatisfação radical.
  • DICA DE OURO: O verbo quando estiver acompanhado do índice de indeterminação do sujeito (SE) somente irá ao plural se após o (SE) tiver artigo no plural. Ex. Compram-se os carros.... ou sem o artigo mas com o substantivo no plural. Ex. compram-se carros.

    Caso o substantivo esteja no singular ou o artigo antem tbm esteja, o verbo acompanhado da partícula (SE) que neste caso é índice de indeterminação do sujeito, irá ficar sempre no singular.


  • Adeildo quando o verbo for VTI  a partícula se será índice de indeterminação do sujeito e o verbo não varia. 
    Em verbos VTD ou VTDI a partícula se será partícula apassivadora AIIIIIIIIIIIIIII sim o verbo varia.
    No exemplo que você postou: Compram-se carros. O verbo comprar é VTD, esse é o motivo pelo qual o verbo varia.


     
     
     

     
  • DÚVIDA
    Prezados colegas,

    Alguém poderia me expliar por que não "caracterizasse" na alternativa D?

    Grato. 
  • Caro amigo Talles, a alternativa que você está em dúvida seria a letra B e não a D.

    Fez-se necessária não só a criação, mas também a multiplicação de sujeitos descartáveis para que se caracterizassem as condições de um capitalismo globalizado.

    "caracterizassem" concorda com as condições por isso está no plural. 
  • Pessoal,

    Até agora ninguém discordou da alternativa "b", mas fiquei em dúvida quanto a sua exatidão. Vejamos:

    b) Fez-se necessária não só a criação, mas também a multiplicação de sujeitos descartáveis para que se caracterizassem as condições de um capitalismo globalizado.

    Segundo Domingos Cegalla, ed. 2010, "o verbo vai para o plural quando os elementos do sujeito composto estão ligados por uma das expessões correlativas não só ... mas também, não só como também, tanto ... como, etc. Exemplos: Não só a nação mas também o príncipe estariam pobres."

    Neste sentido, colocando a frase na ordem direta, teríamos: Não só a criação mas também  a mutiplicação de sujeitos descartáveis fizeram-se necessárias para que se caracterizassem as condições de um capitalismo globalizado.

    Desta forma teríamos um "deslize" também nesta alternativa. Vocês concordam?
  • Caro Leandro, nesse caso o verbo está anteposto e com isso ele aceita duas formas. Uma com o sujeito mais próximo ou com os dois sujeitos. Agora se o verbo vier pós posto ai sim verbo deve concordar com os dois obrigatoriamente.
  • Eu discordo do sujeito apresentado pelo meus colegas do Fórum.



    O que se faz necessário para que se caracterizassem as condições de um capitalismo globalizado?



     A criação, mas também a multiplicação de sujeitos descartáveis 



    Entendo que "mas também" significa adição de dois núcleos formando o sujeito composto