SóProvas


ID
988921
Banca
FCC
Órgão
BACEN
Ano
2006
Provas
Disciplina
Português
Assuntos

                                          O segredo da acumulação primitiva neoliberal  

          Numa coluna publicada na Folha de São Paulo, o jornalista Elio Gaspari evocava o drama recente de um navio de crianças escravas errando ao largo da costa do Benin. Ao ler o texto – que era inspirado , o navio tornava-se uma metáfora de toda a África subsaariana: ilha à deriva, mistura de leprosário com campo de extermínio e reserva de mão-de-obra para migrações desesperadas.

          Elio Gaspari propunha um termo para designar esse povo móvel e desesperado: “os cidadãos descartáveis”. “Massas de homens e mulheres são arrancados de seus meios de subsistência e jogados no mercado de trabalho como proletários livres, desprotegidos e sem direitos.” São palavras de Marx, quando ele descreve a “acumulação primitiva”, ou seja, o processo que, no século XVI, criou as condições necessárias ao surgimento do capitalismo.

          Para que ganhássemos nosso mundo moderno, foi necessário, por exemplo, que os servos feudais fossem, à força, expropriados do pedacinho de terra que podiam cultivar para sustentar-se. Massas inteiras se encontraram, assim, paradoxalmente livres da servidão, mas obrigadas a vender seu trabalho para sobreviver

          Quatro ou cinco séculos mais tarde, essa violência não deveria ter acabado? Ao que parece, o século XX pediu uma espécie de segunda rodada, um ajuste: a criação de sujeitos descartáveis globais para um capitalismo enfim global.

          Simples continuação ou repetição? Talvez haja uma diferença – pequena, mas substancial – entre as massas do século XVI e os migrantes da globalização: as primeiras foram arrancadas de seus meios de subsistência, os segundos são expropriados de seu lugar pela violência da fome, por exemplo, mas quase sempre eles recebem em troca um devaneio. O protótipo poderia ser o prospecto que, um século atrás, seduzia os emigrantes europeus: sonhos de posse, de bem-estar e de ascensão social.

          As condições para que o capitalismo invente sua versão neoliberal são subjetivas. A expropriação que torna essa passagem possível é psicológica: necessita que sejamos arrancados nem tanto de nossos meios de subsistência, mas de nossa comunidade restrita, familiar e social, para sermos lançados numa procura infinita de status (e, hipoteticamente, de bem-estar) definido pelo acesso a bens e serviços. Arrancados de nós mesmos, deveremos querer ardentemente ser algo além do que somos.

          Depois da liberdade de vender nossa força de trabalho, a “acumulação primitiva” do  neoliberalismo nos oferece a liberdade de mudar e subir na vida, ou seja, de cultivar visões, sonhos e devaneios de aventura e sucesso. E, desde o prospecto do emigrante, a oferta vem se aprimorando. A partir dos anos 60, a televisão forneceu os sonhos para que o campo não só
devesse, mas quisesse, ir para a cidade.

          O requisito para que a máquina neoliberal funcione é mais refinado do que a venda dos mesmos sabonetes ou filmes para todos. Trata-se de alimentar um sonho infinito de perfectibilidade
e, portanto, uma insatisfação radical. Não é pouca coisa: é necessário promover e vender objetos e serviços por eles serem indispensáveis para alcançarmos nossos ideais de status, de bem-estar e de felicidade, mas, ao mesmo tempo, é preciso que toda satisfação conclusiva permaneça impossível.

          Para fomentar o sujeito neoliberal, o que importa não é lhe vender mais uma roupa, uma cortina ou uma lipoaspiração; é alimentar nele sonhos de elegância perfeita, casa perfeita e corpo perfeito. Pois esses sonhos perpetuam o sentimento de nossa inadequação e garantem, assim, que ele seja parte inalterável, definidora, da personalidade contemporânea.

          Melhor deixar como está. No entanto, a coisa não fica bem. Do meu pequeno observatório psicanalítico, parece que o permanente sentimento de inadequação faz do sujeito neoliberal
uma espécie de sonhador descartável, que corre atrás da miragem de sua felicidade como um trem descontrolado, sem condutor, acelerando progressivamente por inércia – até que os
trilhos não agüentem mais.

(Contardo Calligaris, Terra de ninguém. São Paulo: Publifolha, 2002)


Na frase Massas inteiras se encontraram, assim, parado- xalmente livres da servidão, mas obrigadas a vender seu trabalho para sobreviver, o emprego do termo paradoxalmente justifica-se quando se atenta para a relação nuclear que entre si estabelecem, no contexto, os elementos

Alternativas
Comentários
  • ""Leia atentamente os versos a seguir:

    “Amor é fogo que arde sem se ver
    É ferida que dói e não se sente
    É um contentamento descontente
    É dor que desatina sem doer”.
    (Camões)

    Nestes versos, percebe-se que o poeta constrói o sentido do Amor-ideia, amor universal, filosofando a respeito do amor, não falando de seus sentimentos pessoais. Para isso, ele se apropria de elementos que, apesar de se excluírem mutuamente, se fundem num mesmo referente, constituindo afirmações aparentemente sem lógica.

    Esse mesmo efeito de contradição acontece neste trecho de Carlos Drummond de Andrade:

    “Eu fujo ou não sei não, mas é tão duro este infinito espaço ultra fechado”.

    Observe que a afirmação sublinhada contraria o consenso, englobando simultaneamente duas ideias opostas. A esse tipo de figura de expressão chamamos paradoxo.

    Há quem confunda paradoxo com antítese. Apesar de serem parecidas, elas se diferenciam por que no paradoxo a oposição se funde num mesmo referente, criando um efeito de contradição:

    “A explosiva descoberta
    Ainda me atordoa.
    Estou cego e vejo.
    Arranco os olhos e vejo”.
    (Carlos Drummond de Andrade)

    Na antítese, o sentido é construído a partir do confronto entre ideias opostas: “Queria um apoio, um horizonte limitado, não o mar sem fim”. (Autran Machado)

    Em síntese, paradoxo é a figura de linguagem que consiste em empregar palavras que, mesmo opostas quanto ao sentido se fundem num mesmo enunciado.

    GABARITO: letra C

    Fontes
    CEREJA, William Roberto e MAGALHÃES, Thereza Cochar. Literatura Brasileira em diálogo com outras literaturas. 3 ed. São Paulo, Atual editora, 2005, p.38-9.
    PIRES, Orlando. Manual de Teoria e Técnica Literária. Rio de Janeiro, Presença, 1981, p. 103-4.
    SAVIOLE, Francisco Platão. Gramática em 44 lições. 15 ed. São Paulo, Ática, 407, 12-13.
    TUFANO, Douglas. Estudos de Língua Portuguesa – Minigramática. São Paulo, Moderna, 2007."