SóProvas


ID
1058893
Banca
FAURGS
Órgão
TJ-RS
Ano
2013
Provas
Disciplina
Português
Assuntos

          Devo educar meus filhos para serem éticos?

01          Quando eu tinha uns 8 ou 9 anos, saí de casa para
02   a escola numa manhã fria de inverno. Chegando ___
03   portaria, meu pai interfonou, perguntando se eu estava
04   levando um agasalho. Disse que sim. Ele me perguntou
05   qual. “O moletom amarelo”, respondi. Era mentira.
06   Não estava levando agasalho nenhum, mas estava
07   com pressa, não queria me atrasar.
08          Voltei do colégio e fui ao armário procurar o tal
09   moletom. Não estava lá, nem em nenhum lugar da
10   casa, e eu imaginava _ _ _ _. Gelei. À noite, meu pai
11   chegou de cara amarrada. Ao me ver, tirou de sua
12   pasta o moletom e me disse: “Eu não me importo que
13   tu não te agasalhes. Mas, nesta casa, nesta família,
14   ninguém mente. Tá claro?”. Sim, claríssimo. Esse foi
15   apenas um episódio memorável de algo que foi o
16   leitmotiv da minha formação familiar. Meu pai era um
17   obcecado por retidão, palavra, ética, pontualidade,
18   honestidade, código de conduta, escala de valores,
19   menschkeit (firmeza de caráter, decência fundamental,
20   em iídiche) e outros termos que eram repetitiva e
21   exaustivamente martelados na minha cabeça. Deu
22   certo. Quer dizer, não sei. No Brasil atual, eu me sinto
23   deslocado.
24         Até hoje chego pontualmente aos meus compro-
25   missos e, na maioria das vezes, fico esperando por
26   interlocutores que se atrasam e nem se desculpam
27   (quinze minutos parece constituir uma “margem de
28   erro” tolerável). Até hoje acredito quando um prestador
29   de serviço promete entregar o trabalho em uma data,
30   apenas para ficar exasperado pelo seu atraso. Fico
31   revoltado sempre que pego um táxi em uma cidade
32   que não conheço e o motorista tenta me roubar.
33   Detesto os colegas de trabalho que fazem corpo mole,
34   que arranjam um jeitinho de fazer menos que o devido.
35   Isso sem falar nas quase úlceras que me surgem ao
36   ler o noticiário e saber que, entre os governantes,
37   viceja um grupo de imorais que roubam com criativi-
38   dade e desfaçatez.
39         Sócrates, via Platão, defende que o homem que
40   pratica o mal é o mais infeliz e escravizado de todos,
41   pois está em conflito interno, em desarmonia consigo
42   mesmo, perenemente acossado e paralisado por
43   medos, remorsos e apetites incontroláveis, tendo uma
44   existência desprezível, para sempre amarrado ___
45   algo (sua própria consciência!) onisciente que o
46   condena. Com o devido respeito ao filósofo de Atenas,
47   nesse caso acredito que ele foi excessivamente
48   otimista. Hannah Arendt me parece ter chegado mais
49   perto da compreensão da perversidade humana ao
50   notar que esse desconforto interior do “pecador”
51   pressupõe um diálogo interno, de cada pessoa com a
52   sua consciência, que na verdade não ocorre com a
53   frequência desejada por Sócrates. Para aqueles que
54   cometem o mal em uma escala menor e o confrontam,
55   Arendt relembra Kant, que sabia que “o desprezo por
56   si próprio, ou melhor, o medo de ter de desprezar a si
57   próprio, muitas vezes não funcionava, e a sua explicação
58   era que o homem pode mentir para si mesmo”. Todo
59   corrupto ou sonegador tem uma explicação, uma lógica
60   para os seus atos, algo que justifique o _ _ _ _ de uma
61   determinada lei dever se aplicar a todos, sempre, mas
62   não a ele, pelo menos não naquele momento em que
63   está cometendo o seu delito.
64          Cai por terra, assim, um dos poucos consolos das
65   pessoas honestas: “Ah, mas pelo menos eu durmo
66   tranquilo”. Os escroques também! Se eles tivessem
67   dramas de consciência, se travassem um diálogo
68   verdadeiro consigo e seu travesseiro, ou não teriam
69   optado por sua “carreira” ou já teriam se suicidado.
70   Esse diálogo consigo mesmo é fruto do que Freud
71   chamou de superego: seguimos um comportamento
72   moral _ _ _ _ ele nos foi inculcado por nossos pais, e
73   renegá-lo seria correr o risco da perda do amor paterno.
74          Na minha visão, só existem, assim, dois cenários
75   em que é objetivamente melhor ser ético do que não.
76   O primeiro é se você é uma pessoa religiosa e acredita
77   que os pecados deste mundo serão punidos no próximo.
78   Não é o meu caso. O segundo é se você vive em uma
79   sociedade ética em que os desvios de comportamento
80   são punidos pela coletividade, quer na forma de sanções
81   penais, quer na forma de ostracismo social. O que
82   não é o caso do Brasil. Não se sabe se De Gaulle disse
83   ou não a frase, mas ela é verdadeira: o Brasil não é
84   um país sério.
85          Assim é que, criando filhos brasileiros morando no
86   Brasil, estou ___ voltas com um deprimente dilema:
87   acredito que o papel de um pai é preparar o seu filho
88   para a vida. Esta é a nossa responsabilidade: dar a
89   nossos filhos os instrumentos para que naveguem,
90   com segurança e destreza, pelas dificuldades do mundo
91   real. E acredito que a ética e a honestidade são valores
92   axiomáticos. Eis aí o dilema: será que o melhor que
93   poderia fazer para preparar meus filhos para viver no
94   Brasil seria não os aprisionar na cela da consciência,
95   do diálogo consigo mesmos, da preocupação com a
96   integridade? Tenho certeza de que nunca chegaria a
97   ponto de incentivá-los a serem escroques, mas poderia,
98   como pai, simplesmente ser mais omisso quanto a essas
99   questões. Tolerar algumas mentiras, não me importar
100  com atrasos, não insistir para que não colem na escola,
101  não instruir para que devolvam o troco recebido a
102  mais...
103         O fato de pensar ___ respeito do assunto e de viver
104  em um país em que existe um dilema entre o ensino
105  da ética e o bom exercício da paternidade já é causa
106  para tristeza. Em última análise, decidi dar a meus
107  filhos a mesma educação que recebi de meu pai. Não
108  porque ache que eles serão mais felizes assim – pelo
109  contrário –, nem porque acredite que, no fim, o bem
110  compensa. Mas _ _ _ _, em primeiro lugar, não conse-
111  guiria conviver comigo mesmo – e com a memória de
112  meu pai – se criasse meus filhos para serem pessoas
113  do tipo que ele me ensinou a desprezar. Além disso,
114  porque acredito que sociedades e culturas mudam.
115  Muitos dos países hoje desenvolvidos e honestos eram
116  antros de corrupção e sordidez 100 anos atrás. Um
117  dia o Brasil há de seguir o mesmo caminho, e aí a
118  retidão que espero inculcar em meus filhos há de ser
119  uma vantagem (não um fardo). Oxalá.

Adaptado de: Devo educar meus filhos para serem éticos?
http://veja.abril.com.br/noticia/educacao/gustavo-ioschpe-devo-educar-meus-filhos-para-serem-eticos
Acessado em 21/10/2013.

Assinale com V (verdadeiro) ou F (falso) as afirmações a seguir, referentes a funções sintáticas de trechos do texto.

( ) A oração se eu estava levando um agasalho (l. 03-04) exerce a função sintática de objeto direto.
( ) A oração que, entre os governantes, viceja um grupo de imorais que roubam com criatividade e desfaçatez (l. 36-38) exerce a função sintática de objeto direto.
( ) A oração que nunca chegaria a ponto de incentivá-los a serem escroques (l. 96-97) exerce a função sintática de objeto indireto.
( ) A oração que existe um dilema entre o ensino da ética e o bom exercício da paternidade (l. 104-105) exerce a função sintática de comple- mento nominal.
( ) A oração que sociedades e culturas mudam (l. 114) exerce a função sintática de objeto direto.

A sequência correta de preenchimento dos parênteses, de cima para baixo, é

Alternativas
Comentários
  • Letra A
    A oração que nunca chegaria a ponto de incentivá-los a serem escroques (l. 96-97) exerce a função sintática de objeto indireto. Acho que é complemento nominal, porque completa o sentido de um substantivo abstrato

    A oração que existe um dilema entre o ensino da ética e o bom exercício da paternidade (l. 104-105) exerce a função sintática de complemento nominal. Acredito que seja um adjunto adnominal por caracterizar o "país" na frase.

    Tem um tempão que não estudo gramática. Se eu estiver errado, corrijam-me por favor. :)



  • Segue minhas análises:

    A oração se eu estava levando um agasalho (l. 03-04) exerce a função sintática de objeto direto. (VERDADEIRO)
    Oração Subordinada Substantiva Objetiva Direta, pois completa o sentido do verbo "perguntando" na oração anterior.

    A oração que, entre os governantes, viceja um grupo de imorais que roubam com criatividade e desfaçatez (l. 36-38) exerce a função sintática de objeto direto. (VERDADEIRO)
    Oração Subordinada Substantiva Objetiva Direta, pois completa o sentido do verbo "saber" na oração anterior.

    A oração que nunca chegaria a ponto de incentivá-los a serem escroques (l. 96-97) exerce a função sintática de objeto indireto. (FALSO)
    Oração Subordinada Substantiva Completiva Nominal, pois complementa o sentido do substantivo "certeza" na oração anterior

    A oração que existe um dilema entre o ensino da ética e o bom exercício da paternidade (l. 104-105) exerce a função sintática de complemento nominal. (FALSO)
    Oração Subordinada Adjetiva Restritiva, pois tem função que adjetivo ao substantivo "País", caracterizando o País e restringindo (particularizando) a ação.

    A oração que sociedades e culturas mudam (l. 114) exerce a função sintática de objeto direto. (VERDADEIRO)
    Oração Subordinada Substantiva Objetiva Direta, pois completa o sentido do verbo "acredito" na oração anterior.

  • Tenho uma dúvida em relação à última afirmativa referente ao verbo acreditar:

      "Além disso, porque acredito que sociedades e culturas mudam"

    Por que o verbo acreditar não pode ser classificado como VTI?

     - Quem acredita, acredita em algo. 

    Desde já obrigado.

  • Também fiquei com a mesma dúvida do rodrigo, 


    Acredito em Deus

    Acredito que Deus existe


    Ora o verbo acreditar ora rege com preposição ora rege sem preposição?

    e mais o que antes de Deus exerce qual função?


    Obrigado por quem souber me esclarecer!!!!

  • Sinceramente fiquei em duvida na:  A oração que existe um dilema entre o ensino da ética e o bom exercício da paternidade (l. 104-105) exerce a função sintática de complemento nominal, por que alguns colegas aqui disseram que se tratava de um adjunto adnominal, mas eu acho que na regência da parte (em que existe um dilema...) esse (que) seria no país e a frase ficaria assim: existe no pais um dilema....   acho que a função dele é adjunto adverbial.

  • Comentário acerca da alternativa D

    ...respeito do assunto e de viver em um país em que (no qual) existe um dilema entre o ensino da ética e o bom exercício...

    A função sintática do pronome relativo "que" (retoma o termo "país") é de "adjunto adverbial de lugar" 

    Ordem direta

    Um dilema existe (V.I) no país (adjunto adverbial de lugar)


  • Pra quem, assim como eu, ficou com dúvida na D (complemento nominal x adjunto adnominal) recomendo fortemente esse vídeo, me ajudou bastante:

    https://www.youtube.com/watch?v=tn2LgYf8WAY

     

  • verbo transitivo direto, transitivo indireto e intransitivo

    Crer, admitir como verdadeiro; aceitar como real; convencer-se da existência de alguma coisa: acredito ser possível amar; não acredito na humanidade; era difícil acreditar.

    verbo transitivo indireto

    Ter confiança; confiar: acreditei no gerente e apliquei meu dinheiro.

    Ter grandes chances de acontecer: acredito no título.

    verbo transitivo direto e transitivo direto predicativo

    Fazer suposições sobre: acredita que ganhará na loteria; acreditam certamente na vitória do Brasil.

    [Por Extensão] Transferir a autoridade para um representante: acreditou o pai para a venda da casa; acreditou o avô como representante para a venda da casa.

    verbo transitivo direto

    Dar credibilidade a; abonar: seu talento acredita as críticas.

    verbo transitivo direto e pronominal

    Ganhar a confiança ou a estima de: o bom caráter acreditou-o; acreditou-se diante da família.

    verbo transitivo direto, bitransitivo e pronominal

    Ser ou estabelecer como credor; colocar uma quantia à disposição.

  • As assertivas I, II e V estão corretas. Vejamos os erros das demais assertivas:

     

    III) trata-se de complemento nominal;

    IV) trata-se de adjunto adnominal;

     

    Quem escolheu a busca não pode recusar a travessia - Guimarães Rosa

    ------------------- 

    Gabarito: A

  • 1 - Entendo que o trecho "se eu estava levando um agasalho" é um objeto direto oracional, mas não sei se o SE representa uma conjunção integrante ou um pronome apassivador.

    2 - Isso sem falar nas quase úlceras que me surgem ao ler o noticiário e saber que, entre os governantes, viceja um grupo de imorais que roubam com criatividade e desfaçatez.

    As quase úlceras me surgem ao ler o noticiário e saber que viceja um grupo de imorais que roubam com criatividade e desfaçatez

    Pelo contexto, é possível encontrar a pessoa a qual os verbos se referem(EU). Fica claro quando observamos os verbos anteriores (detesto, fico, acredito, chego).

  • 1 - Entendo que o trecho "se eu estava levando um agasalho" é um objeto direto oracional, mas não sei se o SE representa uma conjunção integrante ou um pronome apassivador.

    Afinal, qual a função sintática do SE?

    2 - Isso sem falar nas quase úlceras que me surgem ao ler o noticiário e saber que, entre os governantes, viceja um grupo de imorais que roubam com criatividade e desfaçatez.

    As quase úlceras me surgem ao ler o noticiário e saber que viceja um grupo de imorais que roubam com criatividade e desfaçatez

    Pelo contexto, é possível encontrar a pessoa a qual os verbos se referem(EU). Fica claro quando observamos os verbos anteriores (detesto, fico, acredito, chego).

    - as quase úlceras surgem

    - eu leio o noticiário

    - eu sei isso

    - um grupo de imorais viceja

    - um grupo de imorais roubam

  • Isso sem falar nas quase úlceras que me surgem ao ler o noticiário e saber que, entre os governantes, viceja um grupo de imorais que roubam com criatividade e desfaçatez

    eu fique na dúvida por causa dessa vírgula depois do "que"

    pois parece que separa objeto de sujeito,mas acho que só seria o caso se a virgula estivesse antes do "que"