SóProvas


ID
1122649
Banca
FUMARC
Órgão
PC-MG
Ano
2013
Provas
Disciplina
Português
Assuntos

O mais terrível não era a menina me chamando de "tio" e pedindo um trocado, ela de pé no chão no asfalto e eu no meu carro de bacana. O mais terrível não era eu escolhendo a cara e a voz para dizer que não tinha trocado, desculpe, como se a vergonha tivesse um protocolo que a absolvesse. O mais terrível foi nem a naturalidade com que ela cuspiu na minha cara. O mais terrível foi que ela era tão pequena que a cusparada não me atingiu.

Somos boas pessoas, bons cidadãos e bons pais, mas somos tios relapsos. Nossas sobrinhas e nossos sobrinhos enchem as ruas de nossas cidades, cercam nossos carros, invadem nossas vidas e insistem que são nossa família, e não temos nada para lhes dar ou dizer, além de esmola ou "desculpe". Na família brasileira "tios" e sobrinhos têm um diálogo de ameaça e medo, revolta e remorso, e poucas palavras. Nenhum consolo possível, nenhuma esperança, nenhuma explicação. O que dizer a uma sobrinha cuja cabeça mal chega à janela do carro e tenta cuspir na cara do tio? Feio. Falta de educação. Papai do céu castiga. Paciência, minha filha, este é apenas um ciclo econômico e a nossa geração foi escolhida para este vexame, você aí desse tamanho pedindo esmola e eu aqui sem nada para te dizer, agora afasta que abriu o sinal. Não pergunte ao titio quem fez a escolha, é tudo muito complicado e, mesmo, você não entenderia a teoria. Vá cheirar cola, para passar. Vá morrer, para esquecer. Ou vá crescer, para me matar na próxima esquina.

A história, dizem, terminou, e os mocinhos ganharam. Os realistas, os antiutópicos, os racionais. Ficou provado que a solidariedade é antinatural e que cada um deve cuidar dos apetites dos seus. Ou seja: ninguém é "tio" de ninguém. A família humana é um mito, o sofrimento alheio é um estorvo e se a miséria à tua volta te incomoda, compra uma antena parabólica. Ninguém é insensível, dizem os mocinhos, mas a compaixão não funciona. Todos esses anos de convivência com a dor dos outros, que deviam ter nos educado para a compaixão, nos educaram para a autodefesa, para cuspir primeiro. Os bons sentimentos faliram, dizem os mocinhos. Confiemos o futuro ao mercado, que não tem sentimentos, que tritura gerações entre seus dedos invisíveis, pra que se envolver? Afasta do carro que abriu o sinal.

Mas mais terrível do que tudo é eu ficar aqui, escolhendo frases para encher o papel, até cuidando o estilo, já que é domingo. Como se fizesse alguma diferença. Como se isso fosse nos salvar, o tio da sua impotência e cumplicidade e a sobrinha anônima do seu destino. Desculpe.

Quanto aos sentimentos despertados pelo Texto 1, NÃO é correto o que se afirma em:

Alternativas
Comentários
  • (...) deviam ter nos educado para a compaixão, MAS educaram para a autodefesa.

  • o "(...) tio relapsos" na letra B mostra a ironia. Ele não é tio dela verdadeiramente. 

    Questões bem elaboradas sobre o texto.

  • A questão requer interpretação textual em que, a partir das ideias contidas no texto, podemos compreender a intencionalidade do autor.


    É necessário nos atentarmos para a palavra “não", no enunciado, a fim de assinalarmos a alternativa cujas ideias não correspondam às do texto.



    ALTERNATIVA (A) – (1º parágrafo) Este trecho demonstra autocrítica porque o narrador, quando observa de dentro do seu carro de “bacana" aquela criança de pé no chão no asfalto pedindo esmola, ele faz uma autocrítica porque percebe que aquela cena ocorre todos os dias e passou a ser algo natural, inclusive para ele. Nesse momento de reflexão, a autocrítica a qual faz é a falta de sensibilidade do ser humano, que, muitas vezes, prefere fechar os olhos para a triste realidade. Podemos perceber esse sentimento ao longo do texto.


    ALTERNATIVA (B) – (1ª linha do 2º parágrafo) A palavra “tio", nesse texto, não tem relação parental. Este trecho demonstra ironia porque, segundo o narrador, as pessoas se dizem boas, caridosas, mas, na verdade, viram as costas para os problemas sociais.


    ALTERNATIVA (C) – (Último parágrafo) Este trecho demonstra incapacidade porque a reflexão que o narrador nos demonstra é que nos tornamos impotentes quanto aos problemas sociais, por não fazermos nada para mudar, pelos menos mitigar as diferenças sociais.


    ALTERNATIVA (D) – (3º parágrafo) Este trecho não demonstra compaixão, ao fazer essa reflexão, o narrador traz como sentimento autocrítica, não só a ele, mas a sociedade em geral, visto que há um paradoxo: muitos dizem que somos sensíveis, mas, na verdade, não temos compaixão com os problemas alheios.


    Portanto, marcaremos a alternativa (D) por não corresponder ao sentimento de compaixão, e sim uma autocrítica.



    GABARITO DA PROFESSORA: ALTERNATIVA (D).