- ID
- 1405786
- Banca
- VUNESP
- Órgão
- Prefeitura de São Paulo - SP
- Ano
- 2014
- Provas
- Disciplina
- Português
- Assuntos
      Cheguei domingo às oito da manhã, pé ante pé para não  acordar minha mulher. Apesar do voo, que saíra de Manaus às  três da madrugada, estava disposto: havia dormido algumas horas no barco-escola e durante toda a viagem, até aterrissarmos  em São Paulo.
      Desfiz a mala, providência adotada desde que comecei a  viajar feito cigano e sem a qual não sinto haver chegado a lugar  nenhum, e fui correr no Minhocão.
      “Alegria de paulista”, disse uma amiga carioca, quando contei que aproveitava a interdição do tráfego aos domingos para   correr na pista elevada que faz parte da ligação leste-oeste da  cidade, excrescência do urbanismo paulistano acessível a quinhentos metros de casa, no centro.
      Minha amiga tem razão, talvez seja programa de quem vive  numa cidade cinzenta, congestionada, gigantesca, na qual, para  enxergar uma nesga de céu, é preciso correr risco de morte debruçado na janela. Compreendo o encanto de morar em meio a  paisagens paradisíacas ou em cidades bucólicas onde todos se   conhecem, mas para os neuróticos, fascinados pela velocidade   do cotidiano, pelo convívio com a diversidade étnica e com as  manifestações de criatividade que emergem nos aglomerados  humanos, correr domingo de manhãzinha na altura do segundo andar dos prédios da avenida São João é um prazer.
      No interior dos apartamentos, o olhar bisbilhoteiro entrevê  mobílias escuras, guarda-roupas pesados, estantes improvisadas  e, claro, o televisor.
      Duvido que exista paisagem dominical mais urbana. A mulher de camisola florida e cabelo desgrenhado abre a cortina e   boceja, despudorada; o senhor de pijama leva a gaiola do passarinho para o terraço espremido; o homem de abdômen avantajado escova os dentes distraído na janela. Havia planejado  completar vinte e quatro quilômetros, mas, depois de percorrer  seis vezes os três quilômetros de extensão, sucumbi ao peso da  noite mal-dormida. Tomei água de coco, comprei pão e subi pela  escada até o décimo quarto andar do prédio onde moro, exercício aprendido com um de meus pacientes, que aos setenta e seis  anos subia dez vezes por dia doze andares. E, não satisfeito com  a intensidade do esforço, fazia-o vestido com um blusão repleto de bolsos, nos quais distribuía vinte quilos de chumbo.
                                                                        (O Médico Doente, Drauzio Varella, Companhia das Letras. Adaptado)
 
Se usadas no plural as palavras destacadas nas frases – Talvez seja programa de quem vive em uma cidade cinzenta, na qual é difícil enxergar o céu. / Duvido que exista paisagem dominical mais urbana. – elas assumem versão correta em