A lanterninha
Apaguei todas as luzes, e não foi por economia; foi porque me deram uma lanterna de bolso, e tive a ideia de fazer a experiência de luz errante.
A casa, com seus corredores, portas, móveis e ângulos que recebiam iluminação plena, passou a ser um lugar estranho, variável, em que só se viam seções de paredes e objetos, nunca a totalidade. E as seções giravam, desapareciam, transformavam-se. Isso me encantou. Eu descobria outra casa dentro da casa.
A lanterna passava pelas coisas com uma fantasia criativa e destrutiva que subvertia o real. Mas que é o real, senão o acaso da iluminação? Apurei que as coisas não existem por si, mas pela claridade que as modela e projeta em nossa percepção visual. E que a luz é Deus.
A partir daí entronizei minha lanterninha em pequeno nicho colocado na estante, e dispensei-me de ler os tratados que me perturbavam a consciência. Todas as noites retiro-a de lá e mergulho no divino. Até que um dia me canse e tenha de inventar outra divindade.
(ANDRADE, Carlos Drummond de. Contos plausíveis.
Rio de Janeiro: José Olympio, 1985, p. 25)
Ganhei uma lanterna e passei a explorar a lanterna, projetando a luz que emanava da lanterna para transfigurar os cantos e objetos familiares da casa, dotando a lanterna desse poder divino de criar as coisas ao mesmo tempo que ilumina as coisas.
Evitam-se as viciosas repetições acima substituindo-se os segmentos sublinhados, na ordem dada, por: