- ID
- 1844908
- Banca
- Marinha
- Órgão
- COLÉGIO NAVAL
- Ano
- 2013
- Provas
- Disciplina
- Português
- Assuntos
Campeonato do desperdício
No campeonato do desperdício, somos campeões em várias
modalidades. Algumas de que nos orgulhamos e outras de que nem tanto.
Meu amigo Adamastor, antropólogo das horas vagas, não me deu as causas
primeiras de nossa primazia, mas forneceu-me uma lista em que somos
imbatíveis. Claro, das modalidades que "nem tanto".
Vocês já ouviram falar em lixo rico? Somos os campeões. Nosso
lixo faria a fartura de um Haiti. Com o que jogamos fora e que poderia
ser aproveitado, poder-se-ia alimentar muito mais do que a população
do Haiti. Há pesquisas do assunto e cálculos exatos que "nem tanto".
Somos um país pobre com mania de rico. E nosso lixo é mais rico do que
o lixo dos países ricos. Meu falecido pai costumava dizer: rico raspa
o queijo com as costas da faca; remediado corta uma casca bem fininha;
pobre, contudo, arranca uma lasca imensa do queijo. Meu pai dizia, e
tenho a impressão que meu pai era um homem preconceituoso, mas em
termos de manuseio dos alimentos nacionais, arrancamos uma lasca
imensa do queijo, ah, sim, arrancamos.
Outra modalidade em que somos campeões absolutos, o desperdício
do transporte. Ninguém no mundo consegue, tanto quanto nós, jogar
grãos nas estradas. Não viajo pouco e me considero testemunha ocular.
A Anhanguera, por exemplo, tem verdadeiras plantações de soja em suas
margens. Quando pego uma traseira de caminhão e aquela chuva de grãos
me assusta, penso rápido e fico calmo: faz parte da competição e temos
de ser campeões.
Na construção civil o desperdício chega a ser escandaloso. Um dia
o Adamastor, antropólogo das horas vagas, me veio com uma folha de
jornal onde se liam estatísticas indecentes. Com o que se joga fora de
material (do mais bruto ao mais sofisticado)
, o Brasil poderia
construir todos os estádios que a FIFA exige e ainda poderia exportar
cidades para o mundo.
Antigamente, este que vos atormenta, levava um litro lavado para
trocar por outro cheio de leite. Você, caro leitor, talvez nem tenha
notícia disso. Mas era assim. Agora, compra-se o leite e sua embalagem
internamente aluminizada para jogá-la no lixo. Quanto de nosso
petróleo vai para o lixo em forma de sacos plásticos? Vocês já ouviram
falar que o petróleo é um recurso inesgotável? Claro que não! Mas
sente algum remorso ao jogar os sacos trazidos do supermercado no
lixo? Claro que não. Nossa cultura de mosaico nos tirou a capacidade
de ligar os fenômenos entre si.
E o que desperdiçamos de talentos, de esforço educacional? São
advogados atendendo em balcão de banco, engenheiros vendendo cachorro-quente
nas avenidas de São Paulo, são gênios que se desperdiçam
diariamente como se fossem recursos, eles também, inesgotáveis. No dia
em que a gente precisar, vai lá e pega. No dia em que a gente precisar, pode não existir mais. Não importa, vivemos no melhor dos
mundos, segundo a opinião do Adamastor, o gigante, plagiando um tal de
Dr. Pangloss, que ironizava um tal de Leibniz.BRAFF, Menalton.
Em www.cartacapital.com.br - Acesso em 14 jan., 2013
- adaptado.
Dr.Pangloss - personagem de Cândido, de Voltaire. Caracteriza-se pelo
extremo otimismo.
Leibniz - Autor da teoria de que nada acontece ao acaso. Estamos no
melhor dos mundos possíveis, o ser só é, só existe, porque é o melhor
possível.
Adamastor, o- gigante - personificação do Cabo das Tormentas, em Os
Lusíadas, do escritor português Luiz Vaz de Camões,
Em "Não viajo pouco e me considero testemunha ocular." (3° § ), o valor semântico expresso pelo termo destacado é de