Medicina Aeronáutica: Uma Componente Aérea da Saúde Militar
Coronel, Médico, José Maria Gouveia Duarte
Tenente-Coronel, Médico, Rui Manuel Vieira Gomes Correia
Tenente-Coronel, Médico, Simão Pedro Esteves Roque da Silveira
À nossa volta tudo é movimento e instabilidade. Se o ser vivo, prodígio da harmonia, resiste a todas as
agressões que o ameaçam e constantemente assaltam, é devido à entrada em ação de oportunos processos de
adaptação e compensação, regidos pelo Sistema Nervoso, mas desencadeados pelo próprio distúrbio que se
propõem corrigir. Porque ao movimento e instabilidade, ao desequilíbrio, responde o ser vivo na procura de um
novo equilíbrio, adaptando-se e criando nova condição que resiste à mudança.
E é desta sucessão de movimentos e equilíbrios que se faz a vida, onde quer que ocorra, e perante qualquer
tipo de condições. A imensa maioria dos seres humanos está habituada a viver a menos de 2 500 metros de
altitude. Apoiando-se diretamente no solo, subjugado pela força da gravidade, o Homem mantém-se num estado
de relativa estabilidade no meio ambiente a que se foi adotando ao longo dos tempos, mas que lhe é favorável
ao desenvolvimento das suas principais funções.
Apesar da vontade de olhar a terra de um ângulo mais alto, as mais antigas observações do “mal das
montanhas” cedo o fizeram entender que não poderia aceder, impunemente, ao cimo dos mais elevados montes
do nosso planeta. Depois foram as subidas em balão que lhe permitiram estabelecer princípios claros dos
acidentes a que se sujeitaria o Homem quando se elevava na atmosfera. É de então a primeira descrição do “mal
de altitude”, caracterizado por problemas respiratórios e cardiovasculares, com náuseas após os 5 000 metros,
com alterações nervosas progressivas, com cefaleias, astenia extrema e perda de conhecimento pelos 8 000
metros, tornando-se a morte provável se não se encetar rapidamente a descida!
Contudo, ainda que preso ao solo pela gravidade, desprovido das asas dos muito admirados pássaros que
invejavelmente evoluíam nos céus, o homem tinha, no entanto, um cérebro capaz de pensar e imaginar, sonhar e
concretizar. E, ainda que com sacrifícios terríveis, capaz de realizar o sonho acalentado durante séculos: voar!
(...). Passou-se do princípio de que toda a gente podia voar, para um outro, em que só aos perfeitos era permitida
a atividade aérea.
Na Medicina Aeronáutica, a seleção de pilotos baseia-se tanto em aspectos ligados à medicina preventiva
como à medicina preditiva. Passa pelo conhecimento das circunstâncias que envolvem o ambiente em altitude
(...), mas também das patologias que por esse ambiente podem ser agravadas ou desencadeadas e das condições
físicas ou psíquicas que podem pôr em causa a adaptação do homem ao ambiente; mas passa também pelo
conhecimento médico em geral, particularmente das patologias e condições capazes de gerar quadros de
incapacidade, agravados ou não pela atividade aérea, numa base de conhecimento epidemiológico de forma a
ser possível o estabelecimento de fatores ou índices de risco passíveis ou não de ser assumidos. Daí o
estabelecimento de critérios de seleção para o pessoal navegante, e a necessidade de exames médicos e
psicológicos de seleção e revisão.
No meio militar, em que a exigência operacional se impõe de uma forma muito mais intensa, os aspectos
ligados à seleção de pessoal assumem características mais prementes. Estamos perante alguém que se propõe
operar um sistema de armas, em ambiente não natural para o homem (não fisiológico), sujeito a condições
extremas de agressividade, cuja intensidade e variabilidade ultrapassam há muito os mecanismos de adaptação
humana. Porque a aviação militar não trata apenas de transporte de passageiros em condições que se aproximam
daquelas que se apresentam ao nível do solo. Ao combatente do ar pretende-se que vá mais alto, mais rápido e
mais longe. Impõe-se um risco acrescido pela extensão dos limites a atingir e ultrapassar, desenvolvendo-se
mecanismos de segurança que têm por objetivo quebrar ainda mais esses limites, mais do que garantir a
segurança do operador. Impõe-se a exposição física e emocional ao risco, ao mesmo tempo que se exige a
operação racional de sistemas complexos. Prolongam-se as missões para além da fadiga pela necessidade de
projeção do poder. Confia-se o piloto à sua máquina em missões dominadas pela solidão, apenas quebrada via
rádio. Espera-se que opere o sistema de armas com crítica e eficácia. E espera-se que retorne, para recomeçar
dia após dia.
Paralelamente à investigação médica no campo da seleção, cedo se percebeu que os aviadores também não
recebiam apoio médico adequado. Não só os médicos militares não estavam preparados em áreas importantes da
atividade aérea (fisiologia de voo, acelerações, desorientação espacial, medo de voar, sujeição a hipobarismo e
hipoxia, etc.), como a cultura militar não previa a presença regular do médico junto do combatente. Por
exemplo, para consultar o médico, o piloto necessitava de autorização do seu comandante.
O conceito de “flight surgeon” surge nesta sequência, com a necessidade sentida da presença de médico
especialista nesta área do conhecimento junto das tripulações. A vida aeronáutica militar, pela sua
especificidade, pelo risco inerente à operação nos limites da aeronave e do organismo humano, pela necessidade
de aumentar a operacionalidade nos pressupostos de mais alto, mais rápido e mais longe, impunha a necessidade
de melhor gestão dos recursos humanos, de maior apoio ao pessoal envolvido nas operações, de mais
investigação no âmbito da adequação da interface homem-máquina, de mais e melhor treino, da vivência de
situações simuladas, de ambientes equivalentes/próximos da operacionalidade real, da exposição em situações
de segurança à altitude, acelerações, circunstâncias de menor ou alterada estimulação sensorial, etc.
Mas surge também pela necessidade de médicos que conheçam os aviadores não só de forma global, mas
também pessoal, com quem consigam estabelecer relações de proximidade e confiança, de forma a melhor
avaliarem a prontidão, mas também a fazerem sentir a sua presença, numa atitude preventiva e de colaboração.
E também a recuperação dos operadores, que se perderam atrás das linhas inimigas, ou que se vão
perdendo por doença ou queda em combate, de forma a se tornarem novamente operacionais assume
importância relevante na Medicina Aeronáutica. Daí o desenvolvimento de todo um outro conhecimento
associado a outras áreas inicialmente não objeto direto da Medicina Aeronáutica – evacuações aéreas, apoio
sanitário próximo, investigação de acidentes, diagnóstico e tratamento de doenças capazes de interferir com as
aptidões para o voo, etc.
O conhecimento especializado em áreas médicas e não médicas é requerido ao médico aeronáutico. As
especialidades médicas de Otorrinolaringologia, Oftalmologia, Cardiologia, Neurologia, Psiquiatria/Psicologia,
são de particular importância.
O apoio a quem voa é, sem dúvida, cada vez mais um esforço de equipe. O especialista em medicina
aeronáutica deverá ser capaz de, para além do conhecimento que lhe é exigido nestas áreas, comunicar com
outros especialistas. Assim saberá tratar toda a informação, avaliar o impacto na saúde e estado do piloto,
relacioná-lo com o meio e decidir acertadamente sobre a sua atual capacidade para o voo.
Sendo a prioridade principal de qualquer Força Aérea a manutenção da prontidão operacional que lhe
permita o cumprimento das missões que lhe são atribuídas, compete-lhe, portanto, o esforço exigido para a
manutenção de aeronaves no ar, equipadas, e com tripulações treinadas e capazes de cumprir essa missão, com
minimização dos riscos e menor custo em termos operacionais.
A saúde das tripulações, o treino desenvolvido, a familiaridade com os ambientes são fatores que
acentuam as capacidades de adaptação, as possibilidades de correção de erros e o bom resultado final da cada
missão. A prevenção de incapacidades súbitas não esperadas, a condição sensorial do operador, o desempenho
adequado em termos físicos, cognitivos ou emocionais, são fatores passíveis de prevenção ou de minimização
em termos de riscos assumidos.
Daí o interesse da medicina aeronáutica, como valência imprescindível de uma organização militar que
opere meios aéreos. Não só nas vertentes de seleção de pessoal, como na formação, no treino, na investigação,
na operação de simuladores, na programação de algumas missões, no apoio ao combate e no tratamento e
reabilitação.
Os médicos aeronáuticos colocados nas Unidades (Bases Aéreas) constituem a linha da frente da medicina
aeronáutica e são, como tal, os primeiros responsáveis pelo apoio ao pessoal navegante. Todos estes médicos
estão habilitados com o Curso Básico de Medicina Aeronáutica e cumprem horas de voo nas esquadras sediadas
nessas bases. Possuidores de uma preparação clínica, que se pretende sólida, sentem e vivem no seu quotidiano
os problemas próprios do voo.
A sua tarefa na assistência ao pessoal navegante compreende o ensino e a demonstração da fisiologia de
voo, a detecção precoce de alterações recuperáveis que possam interferir na aptidão para o voo ou com a
otimização da condição física e psicológica para o desempenho das missões, o aconselhamento em termos de
adequação das condições de cada tripulante às missões, a suspensão temporária da atividade aérea em casos de
incapacidades súbitas e breves, a orientação para o Hospital ou o Centro de Medicina Aeronáutica de situações
não passíveis de intervenção a nível da Base Aérea.
Este estatuto de Flight Surgeon visa, sobretudo, influenciar todo o pessoal navegante que com ele convive
diariamente a adotar estilos de vida baseados em medidas preventivas que conduzam à preservação do máximo
das suas capacidades e da respectiva aptidão. O estabelecimento de relações de confiança e respeito mútuo entre
o Pessoal Navegante e os médicos aeronáuticos é essencial para a eficácia da atividade aérea, permitindo o
cumprimento escrupuloso da segurança de voo.
Texto adaptado de <http://www.revistamilitar.pt/modules/articles/article.php?id=120> . Acesso em 27 jun. 2009
Assinale a alternativa cujos elementos destacados NÃO apresentam valor de acréscimo.