SóProvas


ID
1903498
Banca
FUNCAB
Órgão
SEGEP-MA
Ano
2016
Provas
Disciplina
Português
Assuntos

                                 A Repartição dos Pães

      Era sábado e estávamos convidados para o almoço de obrigação. Mas cada um de nós gostava demais de sábado para gastá-lo com quem não queríamos. Cada um fora alguma vez feliz e ficara com a marca do desejo. Eu, eu queria tudo. E nós ali presos, como se nosso trem tivesse descarrilado e fôssemos obrigados a pousar entre estranhos. Ninguém ali me queria, eu não queria a ninguém. Quanto a meu sábado - que fora da janela se balançava em acácias e sombras - eu preferia, a gastá-lo mal, fechá-la na mão dura, onde eu o amarfanhava como a um lenço. À espera do almoço, bebíamos sem prazer, à saúde do ressentimento: amanhã já seria domingo. Não é com você que eu quero, dizia nosso olhar sem umidade, e soprávamos devagar a fumaça do cigarro seco. A avareza de não repartir o sábado, ia pouco a pouco roendo e avançando como ferrugem, até que qualquer alegria seria um insulto à alegria maior.

      Só a dona da casa não parecia economizar o sábado para usá-lo numa quinta de noite. Ela, no entanto, cujo coração já conhecera outros sábados. Como pudera esquecer que se quer mais e mais? Não se impacientava sequer com o grupo heterogêneo, sonhador e resignado que na sua casa só esperava como pela hora do primeiro trem partir, qualquer trem - menos ficar naquela estação vazia, menos ter que refrear o cavalo que correria de coração batendo para outros, outros cavalos.

      Passamos afinal à sala para um almoço que não tinha a bênção da fome. E foi quando surpreendidos deparamos com a mesa. Não podia ser para nós...

      Era uma mesa para homens de boa-vontade. Quem seria o conviva realmente esperado e que não viera? Mas éramos nós mesmos. Então aquela mulher dava o melhor não importava a quem? E lavava contente os pés do primeiro estrangeiro. Constrangidos, olhávamos.

      A mesa fora coberta por uma solene abundância. Sobre a toalha branca amontoavam-se espigas de trigo. E maçãs vermelhas, enormes cenouras amarelas [...]. Os tomates eram redondos para ninguém: para o ar, para o redondo ar. Sábado era de quem viesse. E a laranja adoçaria a língua de quem primeiro chegasse.

      Junto do prato de cada mal-convidado, a mulher que lavava pés de estranhos pusera - mesmo sem nos eleger, mesmo sem nos amar - um ramo de trigo ou um cacho de rabanetes ardentes ou uma talhada vermelha de melancia com seus alegres caroços. Tudo cortado pela acidez espanhola que se adivinhava nos limões verdes. Nas bilhas estava o leite, como se tivesse atravessado com as cabras o deserto dos penhascos. Vinho, quase negro de tão pisado, estremecia em vasilhas de barro. Tudo diante de nós. Tudo limpo do retorcido desejo humano. Tudo como é, não como quiséramos. Só existindo, e todo. Assim como existe um campo. Assim como as montanhas. Assim como homens e mulheres, e não nós, os ávidos. Assim como um sábado. Assim como apenas existe. Existe.

      Em nome de nada, era hora de comer. Em nome de ninguém, era bom. Sem nenhum sonho. E nós pouco a pouco a par do dia, pouco a pouco anonimizados, crescendo, maiores, à altura da vida possível. Então, como fidalgos camponeses, aceitamos a mesa.

      Não havia holocausto: aquilo tudo queria tanto ser comido quanto nós queríamos comê-lo. Nada guardando para o dia seguinte, ali mesmo ofereci o que eu sentia àquilo que me fazia sentir. Era um viver que eu não pagara de antemão com o sofrimento da espera, fome que nasce quando a boca já está perto da comida. Porque agora estávamos com fome, fome inteira que abrigava o todo e as migalhas. [...]

      E não quero formar a vida porque a existência já existe. Existe como um chão onde nós todos avançamos. Sem uma palavra de amor. Sem uma palavra. Mas teu prazer entende o meu. Nós somos fortes e nós comemos.

      Pão é amor entre estranhos.

         LISPECTOR, Clarice. A legião estrangeira. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

Sobre as formas verbais destacadas em “A avareza de não (1) REPARTIR o sábado, (2) A pouco a pouco roendo e avançando como ferrugem, até que qualquer alegria (3) SERIA um insulto à alegria maior.”

Alternativas
Comentários
  • Ria - futuro do pretérito -  aponta um fato que deve ocorrer num tempo vindouro com relação ao momento atual; 

  • Questão cabulosa....

  • Letra C.

     

    “A avareza de não (1) REPARTIR o sábado, - Infinitivo pessoal; Não tem vínculo temporal.

    (2) IA pouco a pouco roendo e avançando como ferrugem, - Pretérito Imperfeito; Ação que não foi totalmente terminada.

    até que qualquer alegria (3) SERIA um insulto à alegria maior.” - Futuro do Pretérito; Possibilidade após um fato passado.

     

    Obs.: 

    Para ser um fato totalmente terminado em um momento passado, o verbo estaria no Pretérito Perfeito: eu reparti/ eu fui (ir)/ eu fui (ser). 

    Para que se desenvolvessem ao momento que se fala, o verbo teria que estar no Presente do Indicativo: eu reparto/ eu vou/ eu sou.

    Para que o verbo ocorra num tempo vindouro (posterior) ao momento atual, deveria estar no Futuro do Presente: eu repartirei/ eu irei/ eu serei. 

    Para que o verbo expresse um fato passado, mas anterior a outro já ocorrido, tem que estar no Pretérito mais-que-perfeito: eu repartira/ eu fora/ eu fora.

  • QC colocou a frase de forma errada,mas por eliminação dar pra chegar na letra C.

    Sobre as formas verbais destacadas em “A avareza de não (1) REPARTIR o sábado, (2) A pouco a pouco roendo e avançando como ferrugem, até que qualquer alegria (3) SERIA um insulto à alegria maior.” 

  • a adm publica nao depende do mp para revogar seus atos

  • Adm pública pode anular atos ilegais e revogar atos não mais convenientes. Já o Poder Judiciário apenas pode anular atos através de seus recursos. Exceção: O Poder Judiciário poderá revogar seus própios atos dentro da esfera administrativa de seus próprios atos.

  • Adm pública pode anular atos ilegais e revogar atos não mais convenientes. Já o Poder Judiciário apenas pode anular atos através de seus recursos. Exceção: O Poder Judiciário poderá revogar seus própios atos dentro da esfera administrativa de seus próprios atos.