SóProvas


ID
2243473
Banca
FCC
Órgão
SEDU-ES
Ano
2016
Provas
Disciplina
Português
Assuntos

Medo da eternidade

    Jamais esquecerei o meu aflitivo e dramático contato com a eternidade. 
    Quando eu era muito pequena ainda não tinha provado chicles e mesmo em Recife falava-se pouco deles. Eu nem sabia bem de que espécie de bala ou bombom se tratava. Mesmo o dinheiro que eu tinha não dava para comprar: com o mesmo dinheiro eu lucraria não sei quantas balas. 
    Afinal minha irmã juntou dinheiro, comprou e ao sairmos de casa para a escola me explicou: 
    − Tome cuidado para não perder, porque esta bala nunca se acaba. Dura a vida inteira. 
    − Como não acaba? – Parei um instante na rua, perplexa. 
    − Não acaba nunca, e pronto. 
    Eu estava boba: parecia-me ter sido transportada para o reino de histórias de príncipes e fadas. Peguei a pequena pastilha cor-de-rosa que representava o elixir do longo prazer. Examinei-a, quase não podia acreditar no milagre. Eu que, como outras crianças, às vezes tirava da boca uma bala ainda inteira, para chupar depois, só para fazê-la durar mais. E eis-me com aquela coisa cor-de-rosa, de aparência tão inocente, tornando possível o mundo impossível do qual eu já começara a me dar conta. 
    Com delicadeza, terminei afinal pondo o chicle na boca. 
    − E agora que é que eu faço? − perguntei para não errar no ritual que certamente deveria haver. 
    − Agora chupe o chicle para ir gostando do docinho dele, e só depois que passar o gosto você começa a mastigar. E aí mastiga a vida inteira. A menos que você perca, eu já perdi vários. 
    Perder a eternidade? Nunca. 
    O adocicado do chicle era bonzinho, não podia dizer que era ótimo. E, ainda perplexa, encaminhávamo-nos para a escola. 
    − Acabou-se o docinho. E agora? 
    − Agora mastigue para sempre. 
    Assustei-me, não saberia dizer por quê. Comecei a mastigar e em breve tinha na boca aquele puxa-puxa cinzento de borracha que não tinha gosto de nada. Mastigava, mastigava. Mas me sentia contrafeita. Na verdade eu não estava gostando do gosto. E a vantagem de ser bala eterna me enchia de uma espécie de medo, como se tem diante da ideia de eternidade ou de infinito. 
    Eu não quis confessar que não estava à altura da eternidade. Que só me dava era aflição. Enquanto isso, eu mastigava obedientemente, sem parar. 
    Até que não suportei mais, e, atravessando o portão da escola, dei um jeito de o chicle mastigado cair no chão de areia. 
    − Olha só o que me aconteceu! – disse eu em fingidos espanto e tristeza. Agora não posso mastigar mais! A bala acabou! 
    − Já lhe disse, repetiu minha irmã, que ela não acaba nunca. Mas a gente às vezes perde. Até de noite a gente pode ir mastigando, mas para não engolir no sono a gente prega o chicle na cama. Não fique triste, um dia lhe dou outro, e esse você não perderá. 
    Eu estava envergonhada diante da bondade de minha irmã, envergonhada da mentira que pregara dizendo que o chicle caíra da boca por acaso. Mas aliviada. Sem o peso da eternidade sobre mim.

06 de junho de 1970

(LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo – crônicas. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.289-91)

Ainda que se saiba da liberdade com que Clarice Lispector lidava com esse gênero, pode-se assegurar que Medo da eternidade é uma crônica na medida em que se trata

Alternativas
Comentários
  • Alternativa B

     

    ...de uma visão subjetiva, pessoal, de um acontecimento do cotidiano imediato, muito embora vivenciado na infância, que acaba dando margem à reflexão sobre uma questão capaz de interessar a todos. 

  • A crônica é uma forma textual no estilo de narração que tem por base fatos que acontecem em nosso cotidiano. 

     Principais características da crônica:

    • Narração curta;
    • Descreve fatos da vida cotidiana;
    • Pode ter caráter humorístico, crítico, satírico e/ou irônico;
    • Possui personagens comuns;
    • Segue um tempo cronológico determinado;
    • Uso da oralidade na escrita e do coloquialismo na fala das personagens;
    • Linguagem simples.

     

    Fonte http://brasilescola.uol.com.br/redacao/cronica.htm

  • Clarice eterna ,um prazer questão como essa.

  • LÍNGUA PORTUGUESA

    Tipos de Gêneros Textuais

    Gêneros textuais são estruturas textuais peculiares que surgem dos tipos de textos:

    narrativo,

    descritivo,

    dissertativo-argumentativo,

    expositivo

    e injuntivo.

     

    Texto Narrativo

    Os textos narrativos apresentam ações de personagens no tempo e no espaço. A estrutura da narração é dividida em: apresentação, desenvolvimento, clímax e desfecho.

     

    Alguns exemplos de gêneros textuais narrativos:

     

    - Romance

     

    - Novela

     

    - Crônica

     

    Principais Caraterísticas:

    Narrativa curta

    Linguagem simples e coloquial

    Poucos personagens, se houver

    Espaço reduzido

    Acontecimentos cotidianos

     

    - Contos de Fada

     

    - Fábula

     

    - Lendas

  • Letra B.

    b) Correto. Acerta em cheio a definição de crônica, detalhando o texto específico (que versa sobre uma memória).

    Vamos aos erros das demais alternativas:

    a) Errado. A crônica não se assemelha a uma dissertação filosófica.

    c) Errado. Há, sim, traços de lirismo, mas não chega a ser uma propriedade predominante no texto.

    d) Errado. Deixa-se, sim, transparecer as crenças e convicções do narrador (o adulto).

    e) Errado. As características apresentadas não se assemelham às características da crônica.

    Questão comentada pelo Prof. Bruno Pilastre

  • "Cotidiano" é a palavra chave para identificar uma crônica.

    O texto é maravilhoso.