O apagão poderá nos trazer alguma luz
Não tivemos guerra, não tivemos revolução,
mas teremos o apagão. O apagão será uma porrada
na nossa autoestima, mas terá suas vantagens.
Com o apagão, ficaremos mais humildes,
como os humildes. A onda narcisista da democracia
liberal ficará mais “cabreira", as gargalhadas das
colunas sociais serão menos luminosas, nossos
flashes, menos gloriosos. Baixará o astral das
estrelas globais, dos comedores. As bundas ficarão
mais tímidas, os peitos de silicone, menos
arrebitados. Ficaremos menos arrogantes na
escuridão de nossas vidas de classe média. [...]
Haverá algo de becos escuros, sem saída. A euforia
de Primeiro Mundo falsificado cairá por terra e dará
lugar a uma belíssima e genuína infelicidade.
O Brasil se lembrará do passado agropastoril
que teve e ainda tem; teremos saudades do matão,
do luar do sertão, da Rádio Nacional, do acendedor
de lampiões da rua, dos candeeiros. Lembraremos
das tristes noites dos anos 40, como dos “blackouts”
da Segunda Guerra, mesmo sem submarinos,
apenas sinistros assaltantes nas esquinas apagadas.
O apagão nos lembrará de velhos carnavais:
“Tomara que chova três dias sem parar”. Ou: “Rio,
cidade que nos seduz, de dia falta água, de noite falta
luz!”. Lembraremo-nos dos discos de 78 rpm, das TVs
em preto-e-branco, de um Brasil mais micha, mais
pobre, cambaio, mas bem mais brasileiro em seu
caminho da roça, que o golpe de 64 interrompeu, que
esta mania prostituída de Primeiro Mundo matou
a tapa.
[...]
O apagão nos mostrará que somos
subdesenvolvidos, que essa superestrutura
modernizante está sobre pés de barro. O apagão é
um “upgrade” nas periferias e nos “bondes do Tigrão”,
nos lembrando da escuridão física e mental em que
vivem, fora de nossas avenidas iluminadas. O
apagão nos fará mais pensativos e conscientes de
nossa pequenez. Seremos mais poéticos. Em noites
estreladas, pensaremos: “A solidão dos espaços
infinitos nos apavora”, como disse Pascal. Ou ainda,
se mais líricos, recitaremos Victor Hugo: “A hidra-universo
torce seu corpo cravejado de estrelas...”.
[...] O apagão nos dará medo, o que poderá
nos fazer migrar das grandes cidades, deixando para
trás as avenidas secas e mortas. O apagão nos fará
entender os flagelados do Nordeste, que sempre
olharam o céu como uma grande ameaça. O apagão
nos fará contemplar o azul sem nuvens, pois
aprendemos que a natureza é quando não
respeitada.
O apagão nos fará mais parcimoniosos,
respeitosos e públicos. Acreditaremos menos nos
arroubos de autossuficiência.
O apagão vai dividir as vidas, de novo, em dias
e noites, que serão nítidos sem as luzes que a
modernidade celebra para nos fascinar e nos fazer
esquecer que as cidades, de perto, são feias e
injustas. Vai diminuir a “feerie” do capitalismo
enganador.
Vamos dormir melhor. Talvez amemos mais a
verdade dos dias. Acabará a ilusão de clubbers e
playboys, que terão medo dos “manos" em
cruzamentos negros, e talvez o amor fique mais
recolhido, sussurrado e trêmulo. Talvez o sexo se
revalorize como prazer calmo e doce e fique menos
rebolante e voraz. Talvez aumente a população com a
diminuição das diversões eletrônicas noturnas.
O apagão nos fará inseguros na rua, mas, talvez,
mais amigos nos lares e bares.
Finalmente, nos fará mais perplexos, pois
descobriremos que o Brasil é ainda mais absurdo,
pois nunca entenderemos como, com três agências
cuidando da energia, o governo foi pego de surpresa
por essas trevas anunciadas. Só nos resta o consolo
de saber que, no fim, o apagão nos trará alguma luz
sobre quem somos.
JABOR, Arnaldo. O apagão poderá nos trazer alguma luz. Folha
de S. Paulo,São Paulo, 15 de maio 2001. Extraído do site.
<www.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1505200129.htm. Acesso
em 14out. 2016. (Fragmento)
A transposição da oração “Talvez amemos mais a
verdade dos dias.” para a voz passiva analítica
implicará: