SóProvas


ID
3021913
Banca
FCM
Órgão
Prefeitura de Guarani - MG
Ano
2019
Provas
Disciplina
Português
Assuntos

                                         As formigas


      Quando minha prima e eu descemos do táxi, já era quase noite. Ficamos imóveis diante do velho sobrado de janelas ovaladas, iguais a dois olhos tristes, um deles vazado por uma pedrada. Descansei a mala no chão e apertei o braço da prima.

      — É sinistro.

      Ela me impeliu na direção da porta. Tínhamos outra escolha? Nenhuma pensão nas redondezas oferecia um preço melhor a duas pobres estudantes com liberdade de usar o fogareiro no quarto, a dona nos avisara por telefone que podíamos fazer refeições ligeiras com a condição de não provocar incêndio. Subimos a escada velhíssima, cheirando a creolina.

      — Pelo menos não vi sinal de barata — disse minha prima.

      A dona era uma velha balofa, de peruca mais negra do que a asa da graúna. Vestia um desbotado pijama de seda japonesa e tinha as unhas aduncas recobertas por uma crosta de esmalte vermelho-escuro, descascado nas pontas encardidas. Acendeu um charutinho. — É você que estuda medicina? — perguntou soprando a fumaça na minha direção.

      — Estudo direito. Medicina é ela.

      A mulher nos examinou com indiferença. Devia estar pensando em outra coisa quando soltou uma baforada tão densa que precisei desviar a cara. A saleta era escura, atulhada de móveis velhos, desparelhados. No sofá de palhinha furada no assento, duas almofadas que pareciam ter sido feitas com os restos de um antigo vestido, os bordados salpicados de vidrilho.

      Vou mostrar o quarto, fica no sótão — disse ela em meio a um acesso de tosse. Fez um sinal para que a seguíssemos. 

      — O inquilino antes de vocês também estudava medicina, tinha um caixotinho de ossos que esqueceu aqui, estava sempre mexendo neles.

      Minha prima voltou-se:

      — Um caixote de ossos?

      A mulher não respondeu, concentrada no esforço de subir a estreita escada de caracol que ia dar no quarto. Acendeu a luz. O quarto não podia ser menor, com o teto em declive tão acentuado que nesse trecho teríamos que entrar de gatinhas. Duas camas, dois armários e uma cadeira de palhinha pintada de dourado. No ângulo onde o teto quase se encontrava com o assoalho, estava um caixotinho coberto com um pedaço de plástico. Minha prima largou a mala e, pondo-se de joelhos, puxou o caixotinho pela alça de corda. Levantou o plástico. Parecia fascinada.

      — Mas que ossos tão miudinhos! São de criança?

      — Ele disse que eram de adulto. De um anão.

      — De um anão? é mesmo, a gente vê que já estão formados… Mas que maravilha, é raro a beça esqueleto de anão. E tão limpo, olha aí — admirou-se ela. Trouxe na ponta dos dedos um pequeno crânio de uma brancura de cal. — Tão perfeito, todos os dentinhos!

      — Eu ia jogar tudo no lixo, mas se você se interessa pode ficar com ele. O banheiro é aqui ao lado, só vocês é que vão usar, tenho o meu lá embaixo. Banho quente extra. Telefone também. Café das sete às nove, deixo a mesa posta na cozinha com a garrafa térmica, fechem bem a garrafa recomendou coçando a cabeça. A peruca se deslocou ligeiramente. Soltou uma baforada final: — Não deixem a porta aberta senão meu gato foge.

      Ficamos nos olhando e rindo enquanto ouvíamos o barulho dos seus chinelos de salto na escada. E a tosse encatarrada.

      Esvaziei a mala, dependurei a blusa amarrotada num cabide que enfiei num vão da veneziana, prendi na parede, com durex, uma gravura de Grassmann e sentei meu urso de pelúcia em cima do travesseiro. Fiquei vendo minha prima subir na cadeira, desatarraxar a lâmpada fraquíssima que pendia de um fio solitário no meio do teto e no lugar atarraxar uma lâmpada de duzentas velas que tirou da sacola. O quarto ficou mais alegre. Em compensação, agora a gente podia ver que a roupa de cama não era tão alva assim, alva era a pequena tíbia que ela tirou de dentro do caixotinho. Examinou-a. Tirou uma vértebra e olhou pelo buraco tão reduzido como o aro de um anel. Guardou-as com a delicadeza com que se amontoam ovos numa caixa.

      — Um anão. Raríssimo, entende? E acho que não falta nenhum ossinho, vou trazer as ligaduras, quero ver se no fim da semana começo a montar ele.

      Abrimos uma lata de sardinha que comemos com pão, minha prima tinha sempre alguma lata escondida, costumava estudar até de madrugada e depois fazia sua ceia. Quando acabou o pão, abriu um pacote de bolacha Maria.

      — De onde vem esse cheiro? — perguntei farejando. Fui até o caixotinho, voltei, cheirei o assoalho. — Você não está sentindo um cheiro meio ardido?

      — É de bolor. A casa inteira cheira assim — ela disse. E puxou o caixotinho para debaixo da cama.

      No sonho, um anão louro de colete xadrez e cabelo repartido no meio entrou no quarto fumando charuto. Sentou-se na cama da minha prima, cruzou as perninhas e ali ficou muito sério, vendo-a dormir. Eu quis gritar, tem um anão no quarto! mas acordei antes. A luz estava acesa. Ajoelhada no chão, ainda vestida, minha prima olhava fixamente algum ponto do assoalho.

      — Que é que você está fazendo aí? — perguntei.

      — Essas formigas. Apareceram de repente, já enturmadas. Tão decididas, está vendo?

      Levantei e dei com as formigas pequenas e ruivas que entravam em trilha espessa pela fresta debaixo da porta, atravessavam o quarto, subiam pela parede do caixotinho de ossos e desembocavam lá dentro, disciplinadas como um exército em marcha exemplar.

      — São milhares, nunca vi tanta formiga assim. E não tem trilha de volta, só de ida — estranhei.

      — Só de ida.

      Contei-lhe meu pesadelo com o anão sentado em sua cama.

      — Está debaixo dela — disse minha prima e puxou para fora o caixotinho. Levantou o plástico.

      — Preto de formiga. Me dá o vidro de álcool.

      — Deve ter sobrado alguma coisa aí nesses ossos e elas descobriram, formiga descobre tudo. Se eu fosse você, levava isso lá pra fora.

      — Mas os ossos estão completamente limpos, eu já disse. Não ficou nem um fiapo de cartilagem, limpíssimos. Queria saber o que essas bandidas vêm fuçar aqui.

      Respingou fartamente o álcool em todo o caixote. Em seguida, calçou os sapatos e como uma equilibrista andando no fio de arame, foi pisando firme, um pé diante do outro na trilha de formigas. Foi e voltou duas vezes. Apagou o cigarro. Puxou a cadeira. E ficou olhando dentro do caixotinho.

      — Esquisito. Muito esquisito.

      — O quê?

      — Me lembro que botei o crânio em cima da pilha, me lembro que até calcei ele com as omoplatas para não rolar. E agora ele está aí no chão do caixote, com uma omoplata de cada lado. Por acaso você mexeu aqui?

      — Deus me livre, tenho nojo de osso. Ainda mais de anão.

      Ela cobriu o caixotinho com o plástico, empurrou-o com o pé e levou o fogareiro para a mesa, era a hora do seu chá. No chão, a trilha de formigas mortas era agora uma fita escura que encolheu. Uma formiguinha que escapou da matança passou perto do meu pé, já ia esmagá-la quando vi que levava as mãos à cabeça, como uma pessoa desesperada. Deixei-a sumir numa fresta do assoalho.

      [...]

TELLES, Lygia Fagundes. In: STEEN, Edla van. O conto da mulher brasileira. 3 ed. São Paulo: Global, 2007. p. 91-94. Fragmento.

“Levantei e(1) dei com as formigas pequenas e ruivas que(2) entravam em trilha espessa pela fresta debaixo da porta, atravessavam o quarto, subiam pela parede do caixotinho de ossos e desembocavam (3) dentro, disciplinadas como(4) um exército em marcha exemplar.”


Considerando o contexto em que estão inseridos, todas as categorizações dos termos destacados e numerados estão corretas, EXCETO

Alternativas
Comentários
  • GABARITO: LETRA D

    → queremos uma afirmação INCORRETA, uma classificação incorreta:

    “Levantei e(1) dei com as formigas pequenas e ruivas que(2) entravam em trilha espessa pela fresta debaixo da porta, atravessavam o quarto, subiam pela parede do caixotinho de ossos e desembocavam (3) dentro, disciplinadas como(4) um exército em marcha exemplar.”

    → COMO → conjunção subordinativa comparativa, comparando as formigas com um exército em marcha.

    FORÇA, GUERREIROS(AS)!! ☻

  • d) Adverbial comparativa;

    Outro exemplo:

    Ele fugia da polícia como o diabo foge da cruz.

  • Troca o como por: dessa forma, dessa maneira. compparação.

  • Gabarito: D

    Para completar o comentário dos colegas:

    a) A conjunção está adicionando a ideia de dar (de cara) com as formigas

    b) Pronome relativo e conjunção subordinativa porque inicia uma oração subordinada adjetiva restritiva

  • Não entendi como o "que" na frase em questão é classificada como conjunção subordinativa, não vejo encaixe no contexto e sim como pronome relativo. Logo, a questão pra mim teria duas assertivas corretas (B e D).

  • A) Conjunção aditiva "E";

    B) Embora tenhamos orações subordinadas substantivas, adjetivas e adverbiais, o mesmo não acontece com as conjunções. Morfologicamente, a palavra "que" é um pronome relativo, então não caberia dizer que é uma conjunção subordinativa. O que a torna uma alternativa errônea;

    C) Advérbio de lugar "lá" assim como "acolá, ali...";

    D) Nossa resposta. Na verdade é uma conjunção comparativa .

    Edit.1 - tive que procurar mais fontes, então fui atrás de um comentário do professor Sidney Martins. Segundo ele, oração subordinada adjetiva é encabeçada por pronome relativo. Logo em seguida disse também: "Pronome relativo é pronome relativo. conjunção é conjunção."

    Fonte: A gramática para concursos de Fernando Pestana + Gramática para concursos... de Nilson Teixeira + Português sensacional (canal do youtube) +

  • 1- eu levantei e eu dei com as formigas (oração coordenada aditiva)

    2- eu dei com as formigas / que entravam em trilha. (QUE é pronome, porém temos um oração subordinada restritiva)

    3- as formigas subiam pela parede / e desembocavam LÁ. (complementa o verbo desenbocar, é advérbio)

    4- eu dei com as formigas disciplinadas COMO um exército. (questão errada)

    Essa é minha análise, porém não é certeza de que está correta.

  • Questão bastante confusa. Na dois o "que" seria um pronome relativo introduzindo uma oração subordinada adjetiva restritiva. Se fossemos analisar sintaticamente o "que" teria função de pronome e morfologicamente teria função de conjunção. Já que a questão deu a alternativa "D" como correta acredito que ela queria que analisássemos morfologicamente então...

  • Pelo fato da letra E está , sem duvidas, erradíssima é possível acertar a questão, porém fiquei em dúvida na B.

  • Esta questão deveria ser ANULADA. É óbvio que tem duas respostas possíveis, ou seja, duas alternativas erradas. A função do "que" nesse contexto é PRONOME RELATIVO, o quê tem o substantivo formigas como referente. A palavra "como" é conjunção conformativa ([...] desembocavam lá, disciplinadas, conforme um exército [...])

  • Acertei, mas não recomendo! kkk

  • Como = conjunção subordinativa comparativa

  • Questão de análise sintática (papel que exerce dentro da oração para que a mesma tenha sentido [coesão e coerência])

    e

    não morfológica (função/sentido/classe dentro da gramática "crua e nua": se substantivo, se adjetivo, se advérbio, se pronome, se verbo etc).

  • CUIDADO

    Questão incorreta e comentários incorretos

    Atentar-me-ei apenas ao ponto polêmico da questão, acredito serem os demais de fácil entendimento.

    A partícula "que" é pronome relativo, a banca erra ao classificá-lo como conjunção. Percebam que a função do termo é retomar o substantivo imediatamente anterior, introduzindo uma oração subordinada adjetiva restritiva. Não cabe aqui outra classificação.

    Os colegas que estão tentando justificar o erro da banca por meio de vieses morfológicos/sintáticos estão igualmente errados. Pronomes são pronomes, conjunções são conjunções. A oração adjetiva é introduzida por pronome, afirmar que por introduzir uma oração ele atua como conjunção é tão absurdo quanto possa parecer.

  • A letra D está correta. A letra B apresenta um erro gravíssimo. "Que" não é conjunção subordinativa, e sim pronome relativo.

  • “Levantei e dei com as formigas pequenas e ruivas que entravam em trilha espessa pela fresta debaixo da porta, atravessavam o quarto, subiam pela parede do caixotinho de ossos e desembocavam dentro, disciplinadas como um exército em marcha exemplar.”

    Considerando o contexto em que estão inseridos, todas as categorizações dos termos destacados e numerados estão corretas, EXCETO

    A) conjunção aditiva. certo

    B) conjunção subordinativa. errado (esse "que" é pronome relativo - retoma "formigas" - e introduz uma oração subordinada adjetiva restritiva). Erro grosseiro do examinador.

    C) advérbio de lugar. certo

    D) advérbio de intensidade. errado (conjunção comparativa)

    Gabarito: B e D (questão deveria ter sido ANULADA).

  • Tem algumas bancas que consideram o QUE iniciando orações adjetivas como conjunção, não foi exclusividade dessa banca.