SóProvas


ID
3345907
Banca
IDECAN
Órgão
Prefeitura de Simonésia - MG
Ano
2016
Provas
Disciplina
Português
Assuntos

                                  História de passarinho


      Um ano depois os moradores do bairro ainda se lembravam do homem de cabelo ruivo que enlouqueceu e sumiu de casa.

      Ele era um santo, disse a mulher abrindo os braços. E as pessoas em redor não perguntaram nada e nem era preciso, perguntar o que se todos já sabiam que era um bom homem que de repente abandonou casa, emprego no cartório, o filho único, tudo. E se mandou Deus sabe para onde.

      Só pode ter enlouquecido, sussurrou a mulher, e as pessoas tinham que se aproximar inclinando a cabeça para ouvir melhor. Mas de uma coisa estou certa, tudo começou com aquele passarinho, começou com o passarinho. Que o homem ruivo não sabia se era um canário ou um pintassilgo. Ô, Pai! caçoava o filho, que raio de passarinho é esse que você foi arrumar?!

      O homem ruivo introduzia o dedo entre as grades da gaiola e ficava acariciando a cabeça do passarinho que por essa época era um filhote todo arrepiado, escassa a plumagem de um amarelo-pálido com algumas peninhas de um cinza-claro.

      Não sei, filho, deve ter caído de algum ninho, peguei ele na rua, não sei que passarinho é esse.

      O menino mascava chicle. Você não sabe nada mesmo, Pai, nem marca de carro, nem marca de cigarro, nem marca de passarinho, você não sabe nada.

      Em verdade, o homem ruivo sabia bem poucas coisas. Mas de uma coisa ele estava certo, é que naquele instante gostaria de estar em qualquer parte do mundo, mas em qualquer parte mesmo, menos ali. Mais tarde, quando o passarinho cresceu, o homem ruivo ficou sabendo também o quanto ambos se pareciam, o passarinho e ele.

      Ai!, o canto desse passarinho, queixava-se a mulher. Você quer mesmo me atormentar, Velho. O menino esticava os beiços tentando fazer rodinhas com a fumaça do cigarro que subia para o teto, Bicho mais chato, Pai, solta ele.

      Antes de sair para o trabalho, o homem ruivo costumava ficar algum tempo olhando o passarinho que desatava a cantar, as asas trêmulas ligeiramente abertas, ora pousando num pé ora noutro e cantando como se não pudesse parar nunca mais. O homem então enfiava a ponta do dedo entre as grades, era a despedida e o passarinho, emudecido, vinha meio encolhido oferecer-lhe a cabeça para a carícia. Enquanto o homem se afastava, o passarinho se atirava meio às cegas contra as grades, fugir, fugir. Algumas vezes, o homem assistiu a essas tentativas que deixavam o passarinho tão cansado, o peito palpitante, o bico ferido. Eu sei, você quer ir embora, você quer ir embora, mas não pode ir, lá fora é diferente e agora é tarde demais. A mulher punha-se então a falar, e falava uns cinquenta minutos sobre as coisas todas que quisera ter e que o homem ruivo não lhe dera, não esquecer aquela viagem para Pocinhos do Rio Verde e o trem prateado descendo pela noite até o mar. Esse mar que, se não fosse o pai (que Deus o tenha!), ela jamais teria conhecido, porque em negra hora se casara com um homem que não prestava para nada. Não sei mesmo onde estava com a cabeça quando me casei com você, Velho.

      Ele continuava com o livro aberto no peito, gostava muito de ler. Quando a mulher baixava o tom de voz, ainda furiosa (mas sem saber mais a razão de tanta fúria), o homem ruivo fechava o livro e ia conversar com o passarinho que se punha tão manso que se abrisse a portinhola poderia colhê-lo na palma da mão. Decorridos os cinquenta minutos das queixas, e como ele não respondia mesmo, ela se calava, exausta. Puxava-o pela manga, afetuosa, Vai, Velho, o café está esfriando, nunca pensei que nesta idade avançada eu fosse trabalhar tanto assim. O homem ia tomar o café. Numa dessas vezes, esqueceu de fechar a portinhola e quando voltou com o pano preto para cobrir a gaiola (era noite) a gaiola estava vazia. Ele então sentou-se no degrau de pedra da escada e ali ficou pela madrugada, fixo na escuridão. Quando amanheceu, o gato da vizinha desceu o muro, aproximou-se da escada onde estava o homem ruivo e ficou ali estirado, a se espreguiçar sonolento de tão feliz. Por entre o pelo negro do gato desprendeu-se uma pequenina pena amarelo-acinzentada que o vento delicadamente fez voar. O homem inclinou-se para colher a pena entre o polegar e o indicador. Mas não disse nada, nem mesmo quando o menino, que presenciara a cena, desatou a rir, Passarinho burro! Fugiu e acabou aí, na boca do gato?

      Calmamente, sem a menor pressa, o homem ruivo guardou a pena no bolso do casaco e levantou-se com uma expressão tão estranha que o menino parou de rir para ficar olhando. Repetiria depois à Mãe. Mas ele até que parecia contente, Mãe, juro que o Pai parecia contente, juro! A mulher então interrompeu o filho num sussurro, Ele ficou louco.

       Quando formou-se a roda de vizinhos, o menino voltou a contar isso tudo, mas não achou importante contar aquela coisa que descobriu de repente: o Pai era um homem alto, nunca tinha reparado antes como ele era alto. Não contou também que estranhou o andar do Pai, firme e reto, mas por que ele andava agora desse jeito? E repetiu o que todos já sabiam, que quando o Pai saiu, deixou o portão aberto e não olhou para trás.

(TELLES, Lygia Fagundes. Invenção e memória. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.)

Puxava-o pela manga, afetuosa, Vai, Velho, o café está esfriando, nunca pensei que nesta idade avançada eu fosse trabalhar tanto assim. O homem ia tomar o café.” (10º§) O trecho destacado apresenta uma técnica empregada por algumas outras vezes durante o texto em relação ao modo de citação do discurso alheio. Em relação a tal emprego pode-se afirmar que no trecho destacado:

Alternativas
Comentários
  • Típico do Discurso indireto livre. Neste, em vez de apresentar a personagem em sua voz própria (discurso direto), ou de informar objetivamente o leitor sobre o que ele teria dito (discurso indireto), aproxima narrador e personagem, dando-nos a impressão de que passam a falar em uníssono. Ou seja, narrador e personagem são um só, isto é, as duas vozes se expressam.

  • Questão bem difícil

  • GAB: B

    Questão bem difícil, eu fui por eliminação. Em resumo, há no trecho duas vozes presentes, a saber :

    'Puxava-o pela manga,afetuosa'- fala do narrador ; 'Vai,Velho, o café está esfriando'- fala do personagem ; 'Nunca pensei que nesta idade avançada eu fosse trabalhar tanto assim'- fala do personagem ; 'O homem ia tomar o café'- outra fala do narrador.

  • Na narrativa direta, para indicar o que um determinado personagem falou, o narrador utiliza de um verbo de elocução. Os verbos de elocução são aqueles que introduzem ou anunciam a fala. São exemplos falar, perguntar, afirmar, responder, indagar, replicar, argumentar, pedir, implorar, comentar, exclamar.

  • Puxava-o pela manga, afetuosa, Vai, Velho, o café está esfriando, nunca pensei que nesta idade avançada eu fosse trabalhar tanto assim. O homem ia tomar o café.” (10º§)

    Narrador: "Eu puxava ele pela manga"

    Personagem: "vai velho, o café está esfriando"

    Vê-se aí uma clara relação de narrador e personagem e a falta de elementos subordinativos para evidenciar falas coloquiais como: "vai, velho" etc.

    GAB B

  • Quem já fez prova da FGV já deve está acostumando. kkkk

    GABARITO B, para os apressadinhos.

    a) Os pronomes e o tempo verbal apresentados são determinados pelo contexto em que se inscreve o narrador.

    Se for momento em que se escreve o narrador, está errado, pois os pronomes e tempos verbais são determinando no momento que ocorreu situação, ou sejam, foi no passado em relação ao momento que o narrador escreve (ou relata) porém, tem verbos no presente.

    b) A queda de elos subordinativos e de verbos de elocução cria um efeito particular em que duas vozes se expressam.

    Verdade, uma hora ele usa "puxava-o" que está no passado e "vai" que está no presente.

    c) Os tempos verbais são ordenados em relação ao momento da fala; havendo marcas de pontuação diferenciadas que indicam a introdução do discurso do personagem.

    Na verdade, os dois tempos verbais não são em relação ao momento da fala, um está no passado e o outro no presente.

    d) O tempo verbal, em todo o tempo, é determinado pelo contexto em que se inscreve o personagem; o personagem que fala usa a 1ª pessoa; para falar com o interlocutor, utiliza-se da 2ª pessoa.

    Em "Puxava-o" o narrador se refere a uma 3º pessoa, então está errada a alternativa.

    Foi assim que EU cheguei no gabarito. A analise é bem superficial, mas deu para acertar.

    Se tiver algo errado, não tardem a me avisar. kkkkkkkk

    Vitória na guerra para todos!