- ID
- 3646840
- Banca
- Fundação de Apoio à UNESPAR
- Órgão
- Câmara de Mandaguari - PR
- Ano
- 2019
- Provas
- Disciplina
- Português
- Assuntos
Vergonha parcelada
Gregorio Duvivier
Não estranhe se você me vir levando as mãos ao rosto no meio da rua e gritando comigo mesmo: “Não! Não,
Gregorio! Por que você fez isso, cara?”. Sofro de uma síndrome comum: a da vergonha parcelada. Algumas situações me
causam tanto embaraço que pago por elas a vida inteira. A cada vez que uma vergonha antiga me vem à cabeça, sofro
como se fosse a primeira vez que estivesse sofrendo.
Não parecem vergonhas monumentais, são vergonhas ridículas – mas é isso o que faz delas monumentais.
Exemplo: no aeroporto de Congonhas, pedi um café. “Carioca?” – a moça perguntou. “Sou”, respondi, achando que ela
queria saber minha procedência.
A moça pensou que eu tinha feito uma piadinha péssima e retribuiu com o pior tipo de sorriso – aquele cheio
da misericórdia. Tive vontade de me esconder debaixo dos bancos do salão de embarque pelo simples fato de que alguém
no mundo tinha achado que eu era uma pessoa que faria aquele tipo de piada. Até hoje, só passo em frente à Casa do Pão
de Queijo de Congonhas com uma mochila escondendo o rosto.
Outro dia, chovia a cântaros – deve fazer um bom tempo, porque faz um bom tempo que não chove a cântaros.
Acenava desesperadamente para os táxis, em frente ao Shopping da Gávea. Eis que um sujeito surge e começa a fazer o
mesmo, alguns passos à minha frente. Todo ser humano civilizado sabe que, a partir do momento em que uma pessoa
acena para os táxis, os outros candidatos tem que se posicionar atrás dela. Na frente, nunca. Revoltado, intercedi: “Amigo,
desculpa, cheguei antes”. Ao que ele respondeu, humilde: “To chamando táxi pra você. Sou segurança do shopping”. E
conseguiu um táxi, e abriu a porta pra mim, e eu entrei, e ele bateu a porta, e junto com a porta se abateu sobre mim o peso
da miséria humana.
Encontrei um amigo de longa data. Não lembrava seu nome, e ainda hoje não lembro –talvez fosse Marcelo.
Consegui disfarçar chamando o amigo de “brother”, até que sua namorada me perguntou: “Há quanto tempo você conhece
o Marcelo?”. Respondi: “Desculpa, não sei de quem você tá falando”. O Marcelo em questão, perplexo, me observava com
um misto de tristeza pelo esquecimento e espanto pela minha estupidez.
Enquanto escrevo essa crônica, algumas vezes precisei interromper a digitação para levar as mãos ao rosto e
exclamar, em voz alta: “Não! Não, Gregorio! Por que você fez isso, cara?”.
Fonte: DUVIVIER, Gregorio. Vergonha parcelada. Folha de S.Paulo, 6 abr. 2015.
“A moça pensou que eu tinha feito uma piadinha péssima[...]” O trecho do texto contém: