SóProvas


ID
3658717
Banca
IDIB
Órgão
Prefeitura de Farroupilha - RS
Ano
2018
Provas
Disciplina
Português
Assuntos

TEXTO 

Eloquência Singular


Mal iniciara seu discurso, o deputado embatucou:

— Senhor Presidente: eu não sou daqueles que...

O verbo ia para o singular ou para o plural? Tudo indicava o plural. No entanto, podia perfeitamente ser o singular:

— Não sou daqueles que...

Não sou daqueles que recusam... No plural soava melhor. Mas era preciso precaver-se contra essas armadilhas da linguagem — que recusa?

— ele que tão facilmente caia nelas, e era logo massacrado com um aparte. Não sou daqueles que... Resolveu ganhar tempo:

— ...embora perfeitamente cônscio das minhas altas responsabilidades como representante do povo nesta Casa, não sou...

Daqueles que recusa, evidentemente. Como é que podia ter pensado em plural? Era um desses casos que os gramáticos registram nas suas questiúnculas de português: ia para o singular, não tinha dúvida. Idiotismo de linguagem, devia ser.

— ...daqueles que, em momentos de extrema gravidade, como este que o Brasil atravessa...

Safara-se porque nem se lembrava do verbo que pretendia usar:

— Não sou daqueles que...

Daqueles que o quê? Qualquer coisa, contanto que atravessasse de uma vez essa traiçoeira pinguela gramatical em que sua oratória lamentavelmente se havia metido de saída. Mas a concordância? Qualquer verbo servia, desde que conjugado corretamente, no singular. Ou no plural:

— Não sou daqueles que, dizia eu — e é bom que se repita sempre, senhor Presidente, para que possamos ser dignos da confiança em nós depositada...

Intercalava orações e mais orações, voltando sempre ao ponto de partida, incapaz de se definir por esta ou aquela concordância. Ambas com aparência castiça. Ambas legítimas. Ambas gramaticalmente lídimas, segundo o vernáculo:

— Neste momento tão grave para os destinos da nossa nacionalidade.

Ambas legítimas? Não, não podia ser. Sabia bem que a expressão "daqueles que" era coisa já estudada e decidida por tudo quanto é gramaticoide por aí, qualquer um sabia que levava sempre o verbo ao plural:

— ...não sou daqueles que, conforme afirmava...

Ou ao singular? Há exceções, e aquela bem podia ser uma delas. Daqueles que. Não sou UM daqueles que. Um que recusa, daqueles que recusam. Ah! o verbo era recusar:

— Senhor Presidente. Meus nobres colegas.

A concordância que fosse para o diabo. Intercalou mais uma oração e foi em frente com bravura, disposto a tudo, afirmando não ser daqueles que...

— Como?

Acolheu a interrupção com um suspiro de alívio:

— Não ouvi bem o aparte do nobre deputado.

Silêncio. Ninguém dera aparte nenhum.

— Vossa Excelência, por obséquio, queira falar mais alto, que não ouvi bem — e apontava, agoniado, um dos deputados mais próximos.

— Eu? Mas eu não disse nada...

— Terei o maior prazer em responder ao aparte do nobre colega. Qualquer aparte.

O silêncio continuava. Interessados, os demais deputados se agrupavam em torno do orador, aguardando o desfecho daquela agonia, que agora já era, como no verso de Bilac, a agonia do herói e a agonia da tarde.

— Que é que você acha? — cochichou um.

— Acho que vai para o singular.

— Pois eu não: para o plural, é lógico.

O orador seguia na sua luta:

— Como afirmava no começo de meu discurso, senhor Presidente...

Tirou o lenço do bolso e enxugou o suor da testa. Vontade de aproveitar-se do gesto e pedir ajuda ao próprio Presidente da mesa: por favor, apura aí pra mim, como é que é, me tira desta...

— Quero comunicar ao nobre orador que o seu tempo se acha esgotado.

— Apenas algumas palavras, senhor Presidente, para terminar o meu discurso: e antes de terminar, quero deixar bem claro que, a esta altura de minha existência, depois de mais de vinte anos de vida pública...

E entrava por novos desvios:

— Muito embora... sabendo perfeitamente... os imperativos de minha consciência cívica... senhor Presidente... e o declaro peremptoriamente... não sou daqueles que...

O Presidente voltou a adverti-lo que seu tempo se esgotara. Não havia mais por que fugir:

— Senhor Presidente, meus nobres colegas!

Resolveu arrematar de qualquer maneira. Encheu o peito de desfechou:

— Em suma: não sou daqueles. Tenho dito.

Houve um suspiro de alívio em todo o plenário, as palmas romperam. Muito bem! Muito bem! O orador foi vivamente cumprimentado.

Fernando Sabino

Ao analisar a crônica de Sabino, percebe-se que ela foi construída, predominantemente, a partir a função de linguagem:

Alternativas
Comentários
  • Gabarito: E

    ✓ A Função Metalinguística marca o código sendo usado para estabelecer comunicação com o centro da mensagem, no sentido de que ele é instrumento de explicação de si mesmo; usa-se um signo para explicar a si próprio; essa função busca esclarecer, refletir, discutir o processo discursivo, em um ato de comunicação em que se usa a linguagem para falar sobre ela própria; 

    ➥ Encontramos em poemas que falam sobre o fazer poético (metapoema), sambas que abordam esse gênero musical, filmes que discutem o cinema, palavras usadas para explicar outras em dicionários, narradores que refletem sobre a arte de narrar (metanarração) etc.

    ➥ TEMOS UM TEXTO QUE TRATA ACERCA DA CONCORDÂNCIA VERBAL. Ou seja o código está sendo usado para explicar o próprio código.

    ➥ FORÇA, GUERREIROS(AS)!!

  • Pra quem leu, é uma crônica interessante e a questão fez uma boa associação à função metalinguística, discorrendo a respeito do uso da própria linguagem, especificamente da concordância verbal.

  • Alguem explica porque é metalinguística, por favor?

  • Classificação das Funções da Linguagem

    Função emotiva (expressiva): Caracterizada pela subjetividade com o objetivo de emocionar. É centrada no emissor, ou seja, quem envia a mensagem. A mensagem não precisa ser clara ou de fácil entendimento.

    Função denotativa (referencial ou informativa): Possui a finalidade de informar, notificar, anunciar, indicar, referenciar. A informação é objetiva sobre a realidade, um bom exemplo de função denotativa são as notícias.

    Função conativa (apelativa): Procura convencer o leitor, dar conselhos ou ordens. A função conativa está em livros didáticos, manuais, livros de autoajuda e textos publicitário.

    Função metalinguística: Usa a mesma linguagem para explicar a mesma mensagem. Explica um código usando o próprio código.

    Função poética: Muitos confundem com a função emotiva. A emotiva tem como objetivo emocionar o leitor. Já a função poética se importa mais com a mensagem em si e a forma de como ela será transmitida. As palavras são usadas no sentido figurado.

    Função fática: Interação entre emissor e receptor. Essa é a linguagem que mais usamos no dia a dia.

  • ´Complementando nosso amigo Cleuber...

    Trata-se de função metalinguística por que todo o texto foca na concordância do verbo "Recusar". O personagem não se decide sobre a pronúncia do verbo no discurso. É a linguagem falando da própria língua.

  • A função metalinguística da linguagem ocorre quando o código comunicativo é utilizado para explicar o próprio código comunicativo. Tem, assim, uma função explicativa. A ênfase da comunicação é dada ao próprio código comunicativo.

    A função metalinguística está presente em dicionários, gramáticas e aulas de línguas, mas também em qualquer conversa em que haja a explicação de um conceito, em qualquer assunto que seja explicado pelas próprias palavras do emissor, em qualquer poesia que fale sobre a poesia, em qualquer filme que ensine a fazer filmes,…

  • Mas afinal, é singular ou plural? rsrsrsrs