- ID
- 4006816
- Banca
- FUNCAB
- Órgão
- Prefeitura de Araruama - RJ
- Ano
- 2015
- Provas
- Disciplina
- Português
- Assuntos
Texto para responder à questão.
O Búfalo
Mas era primavera. Até o leão lambeu a testa
glabra da leoa. Os dois animais louros. A mulher
desviou os olhos da jaula, onde só o cheiro quente
lembrava a carnificina que ela viera buscar no Jardim
Zoológico. Depois o leão passeou enjubado e
tranquilo, e a leoa lentamente reconstituiu sobre as
patas estendidas a cabeça de uma esfinge. “Mas isso
é amor, é amor de novo”, revoltou-se a mulher
tentando encontrar-se com o próprio ódio mas era
primavera e dois leões se tinham amado. Com os
punhos nos bolsos do casaco, olhou em torno de si,
rodeada pelas jaulas, enjaulada pelas jaulas
fechadas. Continuou a andar. Os olhos estavam tão
concentrados na procura que sua vista às vezes se
escurecia num sono, e então ela se refazia como na
frescura de uma cova.
Mas a girafa era uma virgem de tranças
recém-cortadas. Com a tola inocência do que é
grande e leve e sem culpa. A mulher do casaco
marrom desviou os olhos, doente, doente. Sem
conseguir — diante da aérea girafa pousada, diante
daquele silencioso pássaro sem asas — sem
conseguir encontrar dentro de si o ponto pior de sua
doença, o ponto mais doente, o ponto de ódio, ela que
fora ao Jardim Zoológico para adoecer. Mas não
diante da girafa que mais era paisagem que um ente.
Não diante daquela carne que se distraíra em altura e
distância, a girafa quase verde. Procurou outros
animais, tentava aprender com eles a odiar. [...]
“Eu te odeio”, disse ela para um homem cujo
crime único era o de não amá-la. “Eu te odeio”, disse
muito apressada. Mas não sabia sequer como se
fazia. Como cavar na terra até encontrar a água
negra, como abrir passagem na terra dura e chegar
jamais a si mesma? Andou pelo Jardim Zoológico
entre mães e crianças. Mas o elefante suportava o
próprio peso. Aquele elefante inteiro a quem fora
dado com uma simples pata esmagar. Mas que não
esmagava. Aquela potência que no entanto se
deixaria docilmente conduzir a um circo, elefante de
crianças. E os olhos, numa bondade de velho, presos
dentro da grande carne herdada. O elefante oriental.
Também a primavera oriental, e tudo nascendo, tudo
escorrendo pelo riacho.
[...]
O búfalo voltou-se, imobilizou-se, e a
distância encarou-a.
Eu te amo, disse ela então com ódio para o
homem cujo grande crime impunível era o de não
querê-la. Eu te odeio, disse implorando amor ao
búfalo.
Enfim provocado, o grande búfalo
aproximou-se sem pressa.
Ele se aproximava, a poeira erguia-se.
A mulher esperou de braços pendidos ao longo do
casaco. Devagar ele se aproximava. Ela não recuou
um só passo. Até que ele chegou às grades e ali
parou. Lá estavam o búfalo e a mulher, frente à frente.
Ela não olhou a cara, nem a boca, nem os cornos.
Olhou seus olhos.
E os olhos do búfalo, os olhos olharam seus
olhos. E uma palidez tão funda foi trocada que a
mulher se entorpeceu dormente. De pé, em sono
profundo. Olhos pequenos e vermelhos a olhavam.
Os olhos do búfalo. A mulher tonteou surpreendida,
lentamente meneava a cabeça. O búfalo calmo.
Lentamente a mulher meneava a cabeça, espantada
com o ódio com que o búfalo, tranquilo de ódio, a
olhava. Quase inocentada, meneando uma cabeça
incrédula, a boca entreaberta. Inocente, curiosa,
entrando cada vez mais fundo dentro daqueles olhos
que sem pressa a fitavam, ingênua, num suspiro de
sono, sem querer nem poder fugir, presa ao mútuo
assassinato. Presa como se sua mão se tivesse
grudado para sempre ao punhal que ela mesma
cravara. Presa, enquanto escorregava enfeitiçada ao
longo das grades. Em tão lenta vertigem que antes do
corpo baquear macio a mulher viu o céu inteiro e um
búfalo.
LISPECTOR, Clarice. O búfalo . In: Laços de família. Rio:
José Olympio, 1982. p.149.
De acordo com os estudos de regência verbal e com o
padrão culto da língua, o verbo em destaque em
“Olhos pequenos e vermelhos a OLHAVAM.” é: