SóProvas


ID
4959391
Banca
IBADE
Órgão
Prefeitura de Vitória - ES
Ano
2019
Provas
Disciplina
Português
Assuntos

A uma senhora

    Com que então, minha senhora, está fazendo mais um ano de casada. Não lhe mando flores, que a distância não permite. Telefonar custa uma pequena fortuna, e ruídos errantes entram na conversa, abafando as vozes; nada mais enervante do que sentir a voz sem poder captá-la, ou recolher somente pedaços de frase, palavras soltas. Não lhe mando telegrama, pois a senhora mesmo o dispensou: costuma não chegar, seja porque há crise política por aqui, seja que há crise militar por aí, e vice-versa; ou as duas crises juntas nos dois lugares. E telegrama está sempre omitindo, calando; de tanto calar, não exprime nada. Por isso, escrevo-lhe. Carta leva quatro dias para chegar. Tanto melhor: quando a receber, estará pensando em outra coisa. Se fosse pelo correio, reconheceria logo a letra no envelope. Indo pelo jornal (astúcia minha), lerá desprevenida as primeiras linhas, até descobrir: “É comigo”.

    É com a senhora mesmo e com seu marido que estou falando, mas tenho motivo especial para dirigir-me aos dois por seu intermédio. Conheço-a há bem mais tempo do que a ele. Posso dizer, sem exagero, que a vi nascer; quando ele me apareceu, era homem feito e vinha trazido pela senhora. Aprovei a escolha, porque função de amigo é aprovar; e acho que não andei mal. A prova é esta carta.

     Estou me lembrando de como as coisas se passaram. Tudo é tão liso na vida de uma pessoa; os dias repetem os dias; de súbito não repetem mais. A pessoa é a mesma; os fatos mudam. A senhora levava uma vidinha tranquila de estudante, ganhara bolsa em Paris, não era de coquetéis; por desfastio, foi a um, conheceu lá um fulano que lhe falou qualquer coisa; não era conversa de pegar, pegou. Tratava-se de ilustre desconhecido, ou antes, de dois ilustres desconhecidos um para o outro. Ele estava de passagem e voltou logo para o seu país. Assim desconhecidos, um mês depois se casavam, à base de intuição e maluquice. Paris foi trocada por outra cidade, de outra nação. Ficamos sem a senhora e nem nos queixamos; obrigação de amigo é não se queixar. Eu aprendera sozinho: vida é aceitação. 

    Os dois malucos conheceram o delicioso e o difícil, a rotina e a quimera, os problemas, as melancolias, os sustos, as angústias, as distrações infantis que vêm depois das angústias; no total, viveram. A população do globo foi aumentada pelos dois em escala razoável: nem muito nem com avareza. Daqui estou ouvindo, ou esperando ouvir, na visita do ano, os gritos de três molequinhos que me julgam uma peça arqueológica simpática. Também me divirto com eles, nesse período; e com isso, e com as demais presenças, embalo a falta da senhora no resto do ano. Pois amigo deve ter imaginação suficiente para fazer, de falta, companhia.

     A senhora, seu marido e os moleques recebam este abraço absolutamente real.


(ANDRADE, C. Drummond de Cadeira de balanço. 11 ed. Rio de Janeiro: J. Olympio Editora, 1979, p. 142-143.)

“Com que então, minha senhora, está fazendo mais um ano de casada.” (1º §) As afirmativas feitas abaixo sobre a estrutura sintático-semântica do enunciado transcrito acima estão corretas, EXCETO

Alternativas
Comentários
  • CUIDADO

    A questão apresenta problemas

    A) a expressão “com que então” exerce a função sintática de adjunto adverbial de modo.

    Incorreta.

    A expressão “com que então” é um marcador discursivo que denota uma suposição, uma hipótese concreta, equivalente a "ao que parece". A banca argumenta, como forma de justificar o gabarito, que estamos diante de interjeição, não exercendo função sintática.

    Sob qualquer análise, a classificação em adjunto adverbial de modo não seria cabível.

    B) o constituinte “minha senhora” está em função de vocativo.

    Correta.

    O termo exerce função de vocativo na construção em que se insere.

    C) o verbo “está fazendo” é impessoal: a oração não tem sujeito.

    Incorreta.

    Embora a banca tenha considerado a locução verbal “está fazendo” como uma construção impessoal, não acredito ser posição acertada.

    A construção está empregada em um sentido de "está completando", "completou", "concluiu", sendo possível resgatar o sujeito "você" (a senhora) no contexto oracional.

    O argumento mais forte em favor da pessoalidade da locução verbal, no entanto, está na construção análoga com substituição do sujeito:

    "“Com que então, meus amigos, estão fazendo mais um ano de casados.”

    Percebam que, ao alterar o vocativo para uma expressão plural, o verbo auxiliar da locução vai também para o plural, deixando explicita a concordância com o sujeito plural e a pessoalidade do verbo.

    D) quanto ao predicado, o verbo “está fazendo” é transitivo direto: objeto direto “mais um ano de casada”.

    Correta.

    De fato estamos diante de construção verbal transitiva direta.

    E) o constituinte “de casada” exerce a função de adjunto adnominal subordinado ao substantivo “ano”.

    Correta.

    A construção “de casada” completa o sentido de substantivo concreto.

  • "está fazendo" é impessoal?! Meu Deus...

  • o verbo “está fazendo” é impessoal: a oração não tem sujeito

    nessa questão temos que ver o seguinte :

    • o sujeito esta separado do verbo por virgula ( caso proibitivo), presume-se que havendo a separação por virgula o sujeito nao existe

    foi dessa forma que pensei

  • "está fazendo" indica tempo decorrido. Sujeito Inexistente como "Era à hora da sobremesa".

  • Parabéns aos envolvidos o //

  • a letra C está correta porque a oração não tem sujeito quando há o uso do verbo ESTAR, HAVER, IR usados com referência a tempo. Veja: Com que então, minha senhora, está fazendo mais um ano de casada.

    fonte: pág. 400 do livro do Rodrigo Bezerra. Nova Gramática da Língua Portuguesa.