NÃO SE COME DINHEIRO
Ailton Krenak
Quando falo de humanidade não estou falando só
Homo sapiens, me refiro a uma imensidão de seres que
nós excluímos desde sempre: caçamos a baleia, tiramos
barbatanas de tubarão, matamos leão e o penduramos na
parede para mostrar que somos mais bravos que ele. Além
da matança de todos os outros humanos que nós achamos que não tinham nada, que estavam aí só para nos
suprir com roupa, comida, abrigo. Somos a praga do planeta, uma espécie de ameba gigante. Ao longo da história,
os humanos, aliás, esse clube exclusivo da humanidade
- que está na declaração universal dos direitos humanos
e nos protocolos das instituições -, foram devastando tudo
ao seu redor. É como se tivessem elegido uma casta, a humanidade, e todos que estão fora dela são as sub-humanidades. Não são só os caiçaras, quilombolas e os povos
indígenas, mas toda vida que deliberadamente largamos
à margem do caminho. E o caminho é o progresso: essa
ideia prospectiva de que estamos indo para algum lugar.
Há um horizonte, estamos indo para lá, e vamos largando
no percurso tudo o que não interessa; o que sobra, a sub-humanidade - alguns de nós fazemos parte dela.
É incrível que esse vírus que está aí agora esteja
atingindo só as pessoas. Foi uma manobra fantástica do
organismo da Terra (...) dizer: "Respirem agora, eu quero ver.” [...] Estamos sendo lembrados de que somos tão
vulneráveis que, se cortarem nosso ar poralguns minutos,
nós morremos. Não é preciso nenhum sistema bélico complexo para apagar essa tal humanidade: se extingue com a
mesma facilidade que os mosquitos de uma sala depois de
aplicado um aerossol. Nós não estamos com nada: essa é
a declaração da Terra.
E, se nós não estamos com nada, deveríamos ter
contato com a experiência de estar vivos para além dos
aparatos tecnológicos que podemos inventar. A ideia da
economia, por exemplo, essa coisa invisível a não ser por
aquele emblema de cifrão. Pode ser uma ficção afirmar
que se a economia não estiver funcionando plenamente
nós morremos. Nós poderíamos colocar todos os dirigentes do banco central em um cofre gigante e deixá-los vivendo lá, qual economia deles. Ninguém come dinheiro.
Hoje de manhã eu vi um indígena norte-americano do
conselho dos anciãos do povo lakota falar sobre o coronavírus. É um homem de uns setenta e poucos anos, chamado
Wakya Um Manee, também conhecido como Vernon Foster.
(Vernon, que é um típico nome americano, pois quando
os colonos chegaram na América, além de proibirem as
línguas nativas, mudavam os nomes das pessoas.) Pois,
repetindo as palavras de um ancestral, ele dizia: "quando o
último peixe estiver nas águas e a última árvore for removida da Terra, só então o homem perceberá que ele não é
capaz de comer seu dinheiro”.
KRENAK, Ailton. Não se come dinheiro. In: Avida não é útil.
SP: Companhia das Letras, 2020. Adaptado.
"Quando falo de humanidade não estou falando só
Homo sapiens, me refiro a uma imensidão de seres que
nós excluímos desde sempre: caçamos baleia, tiramos
barbatanas de tubarão, matamos leão e o penduramos na
parede para mostrar que somos mais bravos que ele.”
As expressões introduzidas pelos dois-pontos estabelecem com o trecho anterior uma relação de: