SóProvas


ID
5566684
Banca
INSTITUTO AOCP
Órgão
FUNPRESP-JUD
Ano
2021
Provas
Disciplina
Português
Assuntos

Conto de você fica ressoando na memória


De: Carlos Drummond de Andrade

Para: Lygia Fagundes Telles


Contemporâneo de Lygia Fagundes Telles e 21 anos mais velho que ela, Drummond pôde acompanhar a trajetória de uma das maiores contistas da literatura brasileira e tecer considerações sobre a obra da amiga. É o que faz nesta carta em que comenta os contos de O jardim selvagem, publicado no ano anterior.


Rio de Janeiro, 28 [de] janeiro [de] 1966

Lygia querida,


    Sabe que ganhei de Natal […] um livro de contos [1] no qual o meu santo nome aparece no ofertório de uma das histórias mais legais, intitulada “A chave”, em que por trás da chave há um casal velho-com-moça e uma outra mulher na sombra, tudo expresso de maneira tão sutil que pega as mínimas ondulações do pensamento do homem, inclusive esta, feroz: chateado de tanta agitação animal da esposa, com o corpo sempre em movimento, o velho tem um relâmpago: “A perna quebrada seria uma solução…” Por sinal que comparei o texto do livro com o texto do jornal de há três anos, e verifiquei o minucioso trabalho de polimento que o conto recebeu. Parece escrito de novo, mais preciso e ao mesmo tempo mais vago, essa vaguidão que é um convite ao leitor para aprofundar a substância, um dizer múltiplo, quase feito de silêncio. Sim, ficou ainda melhor do que estava, mas alguma coisa da primeira versão foi sacrificada, e é esse o preço da obra acabada: não se pode aproveitar tudo que veio do primeiro jato, o autor tem de escolher e pôr de lado alguma coisa válida.

    O livro está perfeito como unidade na variedade, a mão é segura e sabe sugerir a história profunda sob a história aparente. Até mesmo um conto passado na China[2] você consegue fazer funcionar, sem se perder no exotismo ou no jornalístico. Sua grande força me parece estar no psicologismo oculto sob a massa de elementos realistas, assimiláveis por qualquer um. Quem quer simplesmente uma estória tem quase sempre uma estória. Quem quer a verdade subterrânea das criaturas, que o comportamento social disfarça, encontra-a maravilhosamente captada por trás da estória. Unir as duas faces, superpostas, é arte da melhor. Você consegue isso. 

    Ciao, amiga querida. Desejo para você umas férias tranquilas, bem virgilianas. O abraço e a saudade do

    Carlos

[1] N.S.: Trata-se de O jardim selvagem, livro de contos de Lygia publicado em 1965. [2] N.S.: Referência ao conto “Meia-noite em ponto em Xangai”, incluído em O jardim selvagem.


Adaptado de https://www.correioims.com.br/carta/conto-de-vocefica-ressoando-na-memoria/. Acesso em 20/09/2021. 

Considerando os aspectos relacionados à organização das informações, à estruturação do texto de apoio e aos sentidos por ele expressos, julgue o seguinte item.



Em “Unir as duas faces, superpostas, é arte da melhor.”, a expressão qualitativa em destaque caracteriza-se pela ambiguidade, pois pode se referir tanto à Lygia Fagundes Telles quanto à qualidade da arte produzida por ela.

Alternativas
Comentários
  • Alguém entendeu essa? Eu entendi que quem uni é ela e arte é feita por ela.

  • A ambiguidade consiste no duplo sentido: o autor poderia querer significar 1) arte da melhor escritora ou 2) arte do melhor tipo, arte da melhor qualidade.

  • Bom, discordo! (o que não vai mudar absolutamente nada, mas vale para o debate kk).

    De fato, olhando para o texto como um todo, especificamente até o final da frase "[...] da melhor.", acredito que ele poderia sim estar em sentido ambíguo, porém, no entanto, todavia... caso seja continuada a leitura, o trecho "Você consegue isso." parece quebrar essa sensação.

    O que eu quero dizer é: o fato de ele (Carlos Drummond) especificar a capacidade da destinatária da carta (Lygia) de "Unir as duas faces [da 'verdade das criaturas' e de uma 'estória']" acaba retirando o sentido ambíguo que até então poderia ser eventualmente deduzido, ressaltando que ele estaria tratando da arte em si, não da artista.

    Como português não é minha área, não posso afirmar essa teoria hahaha.

    Fica aí para o debate.

    Abraço.

  • Vamos pedir comentário do professor

  • As questões dessa prova de interpretação exigiram uma análise profunda dos fragmentos do texto.

    Em “Unir as duas faces, superpostas, é arte da melhor.”, a expressão qualitativa em destaque caracteriza-se pela ambiguidade, pois pode se referir tanto à Lygia Fagundes Telles quanto à qualidade da arte produzida por ela.

     O livro está perfeito como unidade na variedade (arte produzida por ela.), a mão é segura e sabe sugerir a história profunda sob a história aparente. Até mesmo um conto passado na China, você consegue fazer funcionar (AUTORA-Lygia Fagundes Telles), sem se perder no exotismo ou no jornalístico. (...) Unir as duas faces, superpostas, é arte da melhor. Você consegue isso. 

    Quais as duas faces são unidas? A arte e a autora.

    Logo, qual o referente da frase qualitativa (a arte da melhor)? Não está claro, ficou ambígua de fato.

    Gabarito: certo

    A vontade não permite indisciplina.