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ID
5598151
Banca
CPCON
Órgão
Prefeitura de Sousa - PB
Ano
2021
Provas
Disciplina
Português
Assuntos

Leia o texto abaixo e, em seguida responda à questão


O ceguinho (Stanislaw Ponte Preta)


    No duro mesmo só existiriam dois tipos de cegos: o de nascença e o que ficou cego em vida. Mas, como diz Primo Altamirando, contrariando a chamada voz popular, Deus põe e o homem dispõe. Assim, há um terceiro tipo de cego que nenhum oftalmologista, seja qual for a amplitude de seus conhecimentos oftalmológicos, jamais poderá curar: o cego por necessidade.

    E que o leitor mais apressado pouquinha coisa não pense que estou me referindo àquele tipo de camarada que se encaixa perfeitamente no dito "o pior cego é o que não quer ver", porque este é cego por metáfora, enquanto que o terceiro tipo de cego, isto é, o cego por necessidade, é considerado por todos como cego no duro, às vezes com carteirinha de cego e tudo.

    Seu Júlio, que hoje é lavador de automóveis (e entre os automóveis que lava, lava o meu), já foi cego por necessidade. Começou sua carreira na porta da Igreja de Nosso Senhor do Bonfim (agora Matriz de Nossa Senhora de Copacabana). Seu Júlio, artista consciencioso, era um cego perfeito e ganhava esmola às pampas.

    - E o senhor sempre trabalhou como cego, seu Júlio?

    - Não senhor. Eu comecei perneta, sim senhor.

    - Perneta?

    - Usava perna de pau. Quem me ensinou foi um cigano meu amigo. Agente botando uma calça larga o truque é fácil de fazer.

    Mas, como perneta, seu Júlio um dia teve uma contrariedade. Apareceu pela aí um chefe de polícia com intenções de endireitar o Brasil e foi chato. Organizou uma campanha de perseguição à mendicância e seu Júlio entrou bem. Quando o carro da polícia, mais conhecido na linguagem policial como viatura, parou na porta da igreja, mendigo que podia se pirou, mas seu Júlio não pôde correr de calça larga e perna de pau, que a tanta perfeição não chegaram os engodos do cigano. Seu Júlio foi em cana.

    - E quando saiu das grades?

    - Virei cego por necessidade. Treinei uns dois meses em casa, passando dia e noite com uma venda nos olhos. Fiquei bárbaro em trejeito de cego. A pessoa podia fazer o maior barulho do meu lado, que eu nem me virava pra ver o que tinha acontecido. Fiquei um cego tão legal que um dia houve um desastre bem em frente à igreja. Um carro bateu num caminhão da Cervejaria Brahma e caiu garrafa pra todo lado. Foi um barulho infernal. Pois eu fiquei impávido. Nem me mexi.

    Quando seu Júlio me contou esta passagem, notei o orgulho estampado em seu semblante. Era como um velho ator a contar, numa entrevista, a noite em que a plateia interrompeu seu trabalho com aplausos consagradores em cena aberta. Era como um veterano craque de futebol a descrever para os netos o gol espetacular que fizera e que deu às suas cores o campeonato daquele ano.

    - Como cego o senhor nunca foi em cana, seu Júlio?

    - Nunquinha. Sabe como é... Cego vê longe. Mal surgia um polícia suspeito eu me mandava a 120.

    - E por que abandonou a carreira de cego?

    - Concorrência desleal.

    E explica que, no tempo dele, não havia essa coisa de alugar criança subnutrida para pedir esmola. Depois que apareceram as mães de araque, o cego tornou-se quase obsoleto no setor da mendicância. Apolícia também, hoje em dia, é praticamente omissa.
    - E sendo a polícia omissa, dá muito mais mendigo à saída da missa diz seu Júlio, sem evitar o encabulamento pelo trocadilho infame. Toda essa desorganização administrativa levou-o a abandonar a carreira de cego por necessidade.

    Nos países subdesenvolvidos a mendicância é uma miséria. Seu Júlio que o diga. Era um cego dos melhores, mas largou a carreira na certeza de que, mais dia menos dia, vai ter muito mais gente pedindo do que dando esmola. (Acontece na cidade/ Carlos E. Novaes [et. al.], S. Paulo: Ática, 2005)

Leia o trecho a seguir com atenção para as escolhas do autor quanto ao léxico e às estruturas oracionais, e, em seguida avalie as proposições.


“Mas, como perneta, seu Júlio um dia teve uma contrariedade. Apareceu pela aí um chefe de polícia com intenções de endireitar o Brasil e foi chato. Organizou uma campanha de perseguição à mendicância e seu Júlio entrou bem. Quando o carro da polícia, mais conhecido na linguagem policial como viatura, parou na porta da igreja, mendigo que podia se pirou, mas seu Júlio não pôde correr de calça larga e perna de pau, que a tanta perfeição não chegaram os engodos do cigano. Seu Júlio foi em cana”.


I- Ocorre o uso de expressões giriáticas, a exemplo de “Seu Júlio entrou bem”; “Seu Júlio foi em cana”; mendigo que podia se pirou” (fugiu).

II- Ocorre o uso do QUE (coloquial), empregado com valor de explicação, equivalente a POIS: “pois a tanta perfeição não chegaram os engodos do cigano”.

III- Ocorre inversão sintática, em que o sujeito aparece posposto ao verbo: a tanta perfeição não chegaram os engodos do cigano”.

IV- Ocorre, no final do parágrafo, uma oração justaposta que mantém um vínculo semântico de adversidade, de modo que o conectivo adequado ao contexto seria: “Porém, Seu Júlio foi em cana.”


É CORRETO o que se afirma apenas em:

Alternativas
Comentários
  • I- Ocorre o uso de expressões giriáticas, a exemplo de “Seu Júlio entrou bem”; “Seu Júlio foi em cana”; mendigo que podia se pirou” (fugiu).

    Correto. Essas frases em destaque acenam para uma informalidade comum à língua falada. A propósito, certos autores de certos movimentos literários, intencionalmente, visavam à aproximação entre fala e escrita;

    II- Ocorre o uso do QUE (coloquial), empregado com valor de explicação, equivalente a POIS: “pois a tanta perfeição não chegaram os engodos do cigano”.

    Correto. Leia-se o fragmento original: "(...) mas seu Júlio não pôde correr de calça larga e perna de p.au, pois a tanta perfeição não chegaram os engodos do cigano. Seu Júlio foi em cana”. A partícula "que", elemento muito portentoso na língua portuguesa, pode desempenhar uma variedade de funções e uma delas é substituir certas palavras. Exemplo disso é quando ocorre, também informalmente, a troca da preposição "de" pela partícula "que" em cenários mais coloquiais: "Tenho que (de) comprar uma boa gramática". Embora esse tipo de oração contrarie os princípios da norma culta, vem ganhando largo uso;

    III- Ocorre inversão sintática, em que o sujeito aparece posposto ao verbo: a tanta perfeição não chegaram os engodos do cigano”.

    Correto. Em ordem canônica (ou direta), tem-se sujeito e predicado e não o oposto. Ordenando os termos: "Os engodos do cigano não chegaram a tanta perfeição";

    IV- Ocorre, no final do parágrafo, uma oração justaposta que mantém um vínculo semântico de adversidade, de modo que o conectivo adequado ao contexto seria: “Porém, Seu Júlio foi em cana.”

    Incorreto. A bem da verdade, além de não encerrar sentido adversativo, não há oração justaposta: ela é absoluta e compõe um período simples.

    Letra A

  • Gabarito na alternativa A

    Solicita-se julgamento das assertivas:

    I) Ocorre o uso de expressões giriáticas, a exemplo de “Seu Júlio entrou bem”; “Seu Júlio foi em cana”; "mendigo que podia se pirou” (fugiu).

    Correta. As expressões destacadas, "entrar bem", "ir em cana", "pirar-se", são típicas construções populares conhecidas como gírias, expressões cujo significado é atribuído de forma popular e diversa da convencional.

    II) Ocorre o uso do QUE (coloquial), empregado com valor de explicação, equivalente a POIS: “pois a tanta perfeição não chegaram os engodos do cigano”.

    Correta. Da leitura atenta da passagem, "que a tanta perfeição não chegaram os engodos do cigano", percebe-se o valor causal/explicativo embutido no uso do termo "que". Tal valor é reiterado quando da substituição por elemento coesivo puramente causal/explicativo, conforme se observa no enunciado.

    É uso informal do termo, adequado ao contexto em tela.

    III) Ocorre inversão sintática, em que o sujeito aparece posposto ao verbo: "a tanta perfeição não chegaram os engodos do cigano”.

    Correta. O sujeito da estrutura destacada é a construção "os engodos do cigano", posposta ao seu predicado "não chegaram a tanta perfeição".

    IV) Ocorre, no final do parágrafo, uma oração justaposta que mantém um vínculo semântico de adversidade, de modo que o conectivo adequado ao contexto seria: “Porém, Seu Júlio foi em cana.”

    Incorreta. A oração encontrada ao final da passagem pode ser considerada sintaticamente independente da estrutura maior, com ela guardando apenas relação semântica, mas é incorreto afirmar que esta relação aponta para um sentido adversativo.

    A estrutura que finaliza o trecho estabelece com as orações que a antecedem uma relação de conclusão, conforme pode ser extraído da passagem:

    "(...) mas seu Júlio não pôde correr (...), seu Júlio foi, então, em cana”.