Uma velhinha
Quem me dera um pouco de poesia, esta
manhã, de simplicidade, ao menos para descrever a
velhinha do Westfália! É uma velhinha dos seus
setenta anos, que chega todos os dias ao Westfália
(dez e meia, onze horas), e tudo daquele momento
em diante começa a girar em torno dela. Tudo é para
ela. Quem nunca antes a viu, chama o garçom e
pergunta quem ela é. Saberá, então, que se trata de
uma velhinha “de muito valor", professora de inglês,
francês e alemão, mas “uma grande criadora de
casos".
Não é preciso perguntar de que espécie de
casos, porque, um minuto depois, já a velhinha abre
sua mala de James Bond, de onde retira, para
começar, um copo de prata, em seguida, um
guardanapo, com o qual começa a limpar o copo de
prata, meticulosamente, por dentro e por fora. Volta à
mala e sai lá de dentro com uma faca, um garfo e uma
colher, também de prata. Por último o prato, a única
peça que não é de prata. Enquanto asseia as “armas"
com que vai comer, chama o garçom e manda que
leve os talheres e a louça da casa. Um gesto soberbo
de repulsa.
O garçom (brasileiro) tenta dizer alguma coisa
amável, mas ela repele, por considerar (tinha razão) a
pronúncia defeituosa. E diz, em francês, que é uma
pena aquele homem tentar dizer todo dia a mesma
coisa e nunca acertar. Olha-nos e sorri,
absolutamente certa de que seu espetáculo está
agradando. Pede um filet e recomenda que seja mais
bem do que malpassado. Recomenda pressa,
enquanto bebe dois copos de água mineral. Vem o
filet e ela, num resmungo, manda voltar, porque está
cru. Vai o filet, volta o filet e ela o devolve mais uma
vez alegando que está assado demais. Vem um novo
filet e ela resolve aceitar, mas, antes, faz com os
ombros um protesto de resignação.
Pela descrição, vocês irão supor que essa
velhinha é insuportável. Uma chata. Mas não. É um
encanto. Podia ser avó da Grace Kelly. Uma mulher
que luta o tempo inteiro pelos seus gostos. Não
negocia sua comodidade, seu conforto. Não confia
nas louças e nos talheres daquele restaurante de
aparência limpíssima. Paciência, traz de sua casa,
lavados por ela, a louça, os talheres e o copo de prata.
Um dia o garçom lhe dirá um palavrão? Não acredito.
A velhinha tão bela e frágil por fora, magrinha como
ela é, se a gente abrir, vai ver tem um homem dentro.
Um homem solitário, que sabe o que quer e não cede
“isso" de sua magnífica solidão.
(MARIA, Antônio. “Com Vocês, Antônio Maria". Rio de Janeiro:
Editora Paz e Terra, 1964, p. 262.)
“Por último o prato, a única peça que não é de prata."( § 2)
A vírgula empregada no período acima se justifica pela mesma regra da que se emprega no seguinte fragmento do texto: