SóProvas


ID
1907809
Banca
FCC
Órgão
SEDU-ES
Ano
2016
Provas
Disciplina
Português
Assuntos

                                           Medo da eternidade

        Jamais esquecerei o meu aflitivo e dramático contato com a eternidade.

      Quando eu era muito pequena ainda não tinha provado chicles e mesmo em Recife falava-se pouco deles. Eu nem sabia bem de que espécie de bala ou bombom se tratava. Mesmo o dinheiro que eu tinha não dava para comprar: com o mesmo dinheiro eu lucraria não sei quantas balas.

      Afinal minha irmã juntou dinheiro, comprou e ao sairmos de casa para a escola me explicou:

      − Tome cuidado para não perder, porque esta bala nunca se acaba. Dura a vida inteira.

      − Como não acaba? – Parei um instante na rua, perplexa.

      − Não acaba nunca, e pronto.

      Eu estava boba: parecia-me ter sido transportada para o reino de histórias de príncipes e fadas. Peguei a pequena pastilha cor-de-rosa que representava o elixir do longo prazer. Examinei-a, quase não podia acreditar no milagre. Eu que, como outras crianças, às vezes tirava da boca uma bala ainda inteira, para chupar depois, só para fazê-la durar mais. E eis-me com aquela coisa cor-de-rosa, de aparência tão inocente, tornando possível o mundo impossível do qual eu já começara a me dar conta. 

      Com delicadeza, terminei afinal pondo o chicle na boca.

      − E agora que é que eu faço? − perguntei para não errar no ritual que certamente deveria haver.

      − Agora chupe o chicle para ir gostando do docinho dele, e só depois que passar o gosto você começa a mastigar. E aí mastiga a vida inteira. A menos que você perca, eu já perdi vários.

      Perder a eternidade? Nunca.

      O adocicado do chicle era bonzinho, não podia dizer que era ótimo. E, ainda perplexa, encaminhávamo-nos para a escola.

      − Acabou-se o docinho. E agora?

      − Agora mastigue para sempre.

      Assustei-me, não saberia dizer por quê. Comecei a mastigar e em breve tinha na boca aquele puxa-puxa cinzento de borracha que não tinha gosto de nada. Mastigava, mastigava. Mas me sentia contrafeita. Na verdade eu não estava gostando do gosto. E a vantagem de ser bala eterna me enchia de uma espécie de medo, como se tem diante da ideia de eternidade ou de infinito.

      Eu não quis confessar que não estava à altura da eternidade. Que só me dava era aflição. Enquanto isso, eu mastigava obedientemente, sem parar.

      Até que não suportei mais, e, atravessando o portão da escola, dei um jeito de o chicle mastigado cair no chão de areia.

      − Olha só o que me aconteceu! – disse eu em fingidos espanto e tristeza. Agora não posso mastigar mais! A bala acabou!

      − Já lhe disse, repetiu minha irmã, que ela não acaba nunca. Mas a gente às vezes perde. Até de noite a gente pode ir mastigando, mas para não engolir no sono a gente prega o chicle na cama. Não fique triste, um dia lhe dou outro, e esse você não perderá.

      Eu estava envergonhada diante da bondade de minha irmã, envergonhada da mentira que pregara dizendo que o chicle caíra da boca por acaso.

      Mas aliviada. Sem o peso da eternidade sobre mim.

                                           06 de junho de 1970

(LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo – crônicas. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.289-91)

Parei um instante na rua, perplexa. (5° parágrafo)

Peguei a pequena pastilha cor-de-rosa que representava o elixir do longo prazer. (7°parágrafo)

E agora que é que eu faço? – perguntei para não errar no ritual que certamente deveria haver. (9° parágrafo)

As palavras grifadas nessas frases assumem no texto, respectivamente, o sentido de:

Alternativas
Comentários
  • Ritual - é uma cerimônia.

    Já vi questões de outras bancas desse tipo e ainda com as mesmas palavras.

  • Perplexa - Indeciso, hesitante; espantado, atônito.

    Representar - Retratar, significar, patentear, ser o procurador, figurar.

    Ritual - Pertencente ou relativo aos ritos. Que contém os ritos. Livro que contém os ritos, ou a forma das cerimônias de uma religião. Cerimonial. Conjunto das regras a observar; etiqueta, praxe, protocolo.

    (Dicionário Online e Michaelis)

     

    Alternativa A

  • Périplo:

    1. Viagem de .circum-navegação; viagem à volta de um continente, de uma região, de um país.

    2. Relação ou relato dessa viagem.


    "périplo", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/dlpo/p%C3%A9riplo [consultado em 31-05-2016].

  • Quem lá vai saber o que é périplo? É uma palavra inespressada.

  • nem precisava saber o que 'périplo' significa pra acertar a questão. A palavra 'cerimônia' já deu a resposta de cara.

  • Complementando...

     

    inerme = indefesa.

     

    périplo = trajeto, viagem.

     

    imolação = sacrifício.

     

    liturgia = rito do culto religioso.

     

    GAB: A

  • Letra A.

    Para resolver essa questão, procure substituir cada uma das palavras apresentadas pelas alternativas. Você perceberá que ao menos uma das palavras apresentadas nas opções “b”, “c”, “d” e “e” não é sinônimo de perplexa, representar e ritual.

    Para ajudar, vou indicar o significado de palavras menos comuns:

    • inerme = carente de energia física ou moral; abatido, apático, prostrado;

    • périplo = viagem de circum-navegação em torno de um país, de um continente;

    • imolação = morte em sacrifício a uma divindade.

    Questão comentada pelo Prof. Bruno Pilastre