SóProvas


ID
3126133
Banca
Marinha
Órgão
EFOMM
Ano
2019
Provas
Disciplina
Português
Assuntos

                               Como Dizia Meu Pai


      Já se tornou hábito meu, em meio a uma conversa, preceder algum comentário por uma introdução:

      — Como dizia meu pai...

      Nem sempre me reporto a algo que ele realmente dizia, sendo apenas uma maneira coloquial de dar ênfase a alguma opinião.

      De uns tempos para cá, porém, comecei a perceber que a opinião, sem ser de caso pensado, parece de fato corresponder a alguma coisa que Seu Domingos costumava dizer. Isso significará talvez — Deus queira — que insensivelmente vou me tomando com o correr dos anos cada vez mais parecido com ele. Ou, pelo menos, me identificando com a herança espiritual que dele recebi.

      Não raro me surpreendo, antes de agir, tentando descobrir como ele agiria em semelhantes circunstâncias, repetindo uma atitude sua, até mesmo esboçando um gesto seu. Ao formular uma ideia, percebo que estou concebendo, para nortear meu pensamento, um princípio que, se não foi enunciado por ele, só pode ter sido inspirado por sua presença dentro de mim.

      — No fim tudo dá certo...

      Ainda ontem eu tranquilizava um de meus filhos com esta frase, sem reparar que repetia literalmente o que ele costumava dizer, sempre concluindo com olhar travesso:

      — Se não deu certo, é porque ainda não chegou no fim.

      Gosto de evocar a figura mansa de Seu Domingos, a quem chamávamos paizinho, a subir pausadamente a escada da varanda de nossa casa, todos os dias, ao cair da tarde, egresso do escritório situado no porão. Ou depois do jantar, sentado com minha mãe no sofá de palhinha da varanda, como namorados, trocando notícias do dia. Os filhos guardavam zelosa distância, até que ela ia aos seus afazeres e ele se punha à disposição de cada um, para ouvir nossos problemas e ajudar a resolvê-los. Finda a última audiência, passava a mão no chapéu e na bengala e saía para uma volta, um encontro eventual com algum amigo. Regressava religiosamente uma hora depois, e tendo descido a pé até o centro, subia sempre de bonde. Se acaso ainda estávamos acordados, podíamos contar com o saquinho de balas que o paizinho nunca deixava de trazer.

      Costumava se distrair realizando pequenos consertos domésticos: uma boia de descarga, a bucha de uma torneira, um fusível queimado. Dispunha para isso da necessária habilidade e de uma preciosa caixa de ferramentas em que ninguém mais podia tocar. Aprendi com ele como é indispensável, para a boa ordem da casa, ter à mão pelo menos um alicate e uma chave de fenda. Durante algum tempo andou às voltas com o velho relógio de parede que fora de seu pai, hoje me pertence e amanhã será de meu filho: estava atrasando. Depois de remexer durante vários dias em suas entranhas, deu por findo o trabalho, embora ao remontá-lo houvessem sobrado umas pecinhas, que alegou não fazerem falta. O relógio passou a funcionar sem atrasos, e as batidas a soar em horas desencontradas. Como, aliás, acontece até hoje.

      Tinha por hábito emitir um pequeno sopro de assovio, que tanto podia ser indício de paz de espírito como do esforço para controlar a perturbação diante de algum aborrecimento.

      — As coisas são como são e não como deviam ser. Ou como gostaríamos que fossem.

      Este pronunciamento se fazia ouvir em geral quando diante de uma fatalidade a que não se poderia fugir. Queria dizer que devemos nos conformar com o fato de nossa vontade não poder prevalecer sobre a vontade de Deus - embora jamais fosse assim eloquente em suas conclusões. Estas quase sempre eram, mesmo, eivadas de certo ceticismo preventivo ante as esperanças vãs:

      — O que não tem solução, solucionado está.

      E tudo que acontece é bom — talvez não chegasse ao cúmulo do otimismo de afirmar isso, como seu filho Gerson, mas não vacilava em sustentar que toda mudança é para melhor: se mudou, é porque não estava dando certo. E se quiser que mude, não podendo fazer nada para isso, espere, que mudará por si.

      [...] 

      Tudo isso que de uns tempos para cá me vem ocorrendo, às vezes inconscientemente, como legado de meu pai, teve seu coroamento há poucos dias, quando eu ia caminhando distraído pela praia. Revirava na cabeça, não sei a que propósito, uma frase ouvida desde a infância e que fazia parte de sua filosofia: não se deve aumentar a aflição dos aflitos. Esta máxima me conduziu a outra, enunciada por Carlos Drummond de Andrade no filme que fiz sobre ele, a qual certamente Seu Domingos perfilharia: não devemos exigir das pessoas mais do que elas podem dar. De repente fui fulminado por uma verdade tão absoluta que tive de parar, completamente zonzo, fechando os olhos para entender melhor. No entanto era uma verdade evangélica, de clareza cintilante como um raio de sol, cheguei a fazer uma vênia de gratidão a Seu Domingos por me havê-la enviado:

      — Só há um meio de resolver qualquer problema nosso: é resolver primeiro o do outro.

      Com o tempo, a cidade foi tomando conhecimento do seu bom senso, da experiência adquirida ao longo de uma vida sem maiores ambições: Seu Domingos, além de representante de umas firmas inglesas, era procurador de partes — solene designação para uma atividade que hoje talvez fosse referida como a de um despachante. A princípio os amigos, conhecidos, e depois até desconhecidos passaram a procurá-lo para ouvir um conselho ou receber dele uma orientação. Era de se ver a romaria no seu escritório todas as manhãs: um funcionário que dera desfalque, uma mulher abandonada pelo marido, um pai agoniado com problemas do filho — era gente assim que vinha buscar com ele alívio para a sua dúvida, o seu medo, a sua aflição. O próprio Governador, que não o conhecia pessoalmente, certa vez o consultou através de um secretário, sobre questão administrativa que o atormentava. Não se falando nos filhos: mesmo depois de ter saído de casa, mais de uma vez tomei trem ou avião e fui colher uma palavra sua que hoje tanta falta me faz.

      Resta apenas evocá-la, como faço agora, para me servir de consolo nas horas más. No momento, ele próprio está aqui a meu lado, com o seu sorriso bom.

SABINO, Fernando. A volta por cima. In: Obra Reunida v. III. Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguilar, 1996. (Texto adaptado)

Assinale a opção em que a oração sublinhada se classifica como interferente.

Alternativas
Comentários
  • As orações intercaladas (ou interferentes) representam um assunto que nos lembra uma outra modalidade de orações já existentes – as orações subordinadas. São denominadas subordinadas porque apresentam uma dependência sintática entre os termos que as compõem. Estes termos podem ser representados por um objeto, complemento nominal, aposto, adjetivo, adjunto adverbial, entre outros. Eis, então, o ponto central que demarca a diferença que há entre as subordinadas e as orações intercaladas, visto que nelas (intercaladas) não há essa dependência.

    Assim sendo, por serem independentes da estrutura sintática do período, sua existência se deve ao fato de inserirem uma opinião, observação, ressalva ou advertência. A título de melhor ilustrarmos o que estamos afirmando, vejamos alguns enunciados:

    Continuamos ansiosos, disseram os alunos ao professor, pela sua volta.  

    O termo em destaque representa a modalidade em questão, uma vez inserido entre vírgulas, representando um dos sinais de pontuação.

    O trabalho – cremos nós – não será difícil.

    Constatamos a mesma identificação, contudo, o termo aparece entre travessões, assemelhando-se ao exemplo anterior.

    Vocês estudaram para as avaliações? – perguntou a diretora enfurecida.

    O termo ora em destaque representa a oração intercalada, demarcado também pelo travessão.

    Todos chegaram (exaustos, por sinal) daquela longa e cansativa viagem. 

    Ocupando igual função, o termo em destaque aparece demarcado entre parênteses.

  • A princípio, “intercaladas e interferentes” são conceitos que não fazem parte do nosso cotidiano linguístico. Contudo, quando estabelecemos uma maior familiaridade com o assunto, constatamos que se trata de algo comum, simples.

    Exemplos:

    Aguardamos ansiosos, disseram os alunos, pela entrega dos resultados.

    Depreendemos que o termo em destaque representa a modalidade em questão (oração intercalada), que aparece entre vírgulas.

    Tudo se acertará – creio eu – muito em breve.

    Da mesma forma ocorre com tal exemplo, uma vez que a oração intercalada se encontra entre dois travessões.

    Gostaram dos presentes? – perguntou a madrinha.

    Demarcada também pelo travessão, a oração intercalada se faz presente no contexto oracional.

    Aquelas palavras (sábias, por sinal) me fizeram compreender que precisava mudar de opinião.

    Agora demarcada entre parênteses, percebemos a mesma função ocupada nos demais exemplos.

  • Orações interferentes ou intercaladas são simplesmente aquelas que "se intrometem" no meio da frase, acressentando algo (uma ressalva).

    bibliografia: Cegalla DOMINGOS

  • i nterferente - quebra de sentido do período i ntrometida