Texto para responder à questão.
O gato preto
Não espero nem peço que acreditem na
narrativa tão estranha e ainda assim tão doméstica
que estou começando a escrever. Louco, de fato, eu
seria se esperasse por isso, num caso em que até os
meus sentidos rejeitam seu próprio testemunho. No
entanto, louco eu não sou - e com toda certeza eu não
estou sonhando. Mas se morro amanhã, hoje alivio
minha alma. O meu objetivo imediato é apresentar ao
mundo, sucintamente e sem comentários, uma série
de eventos meramente domésticos. Em suas
consequências, tais fatos aterrorizaram - torturaram -
destruíram minha pessoa. No entanto, não vou tentar
explicá-los. Para mim representam apenas horror -
para muitos vão parecer menos terríveis do que
barrocos. No futuro, talvez, algum intelecto será
capaz de reduzir meu fantasma ao lugar-comum -
algum intelecto mais calmo, mais lógico, e muito
menos excitável que o meu, que vai perceber, nas
circunstâncias que detalho com pasmo, nada mais
que uma habitual de causas e efeitos muito naturais.
Desde criança que eu era conhecido pela
docilidade e humanidade do meu caráter. O meu
coração era tão terno que fez de mim um objeto de
escárnio dos meus camaradas. Gostava
particularmente de animais e os meus pais
autorizavam-me a ter uma grande variedade de
bichos de estimação. Com eles passava a maior
parte do tempo e nunca me sentia tão feliz como
quando os alimentava e acarinhava. Esta
peculiaridade do meu caráter cresceu comigo e em
adulto derivava daí uma das minhas principais fontes
de prazer. Para quem já alguma vez amou um cão fiel
e sagaz, não preciso dar-me ao trabalho de explicar a
natureza ou intensidade da satisfação daí emanada.
Algo existe no amor desinteressado e generoso de
uma besta que vai direito ao coração daquele que
teve frequentemente a ocasião de avaliar a fraca
amizade e a evanescente fidelidade do homem
vulgar.
POE, Edgar Allan (1978) “O gato preto". In _____ . Histórias
extraordinárias. Trad. Breno da Silveira e outros. São Paulo: Abril
Cultural, p.39-51.
Do ponto de vista da norma culta, o segmento
destacado em “O meu coração era tão terno QUE
FEZ DE MIM UM OBJETO DE ESCÁRNIO DOS
MEUS CAMARADAS." possui valor de: