- ID
- 4832440
- Banca
- CEV-URCA
- Órgão
- Prefeitura de Brejo Santo - CE
- Ano
- 2019
- Provas
- Disciplina
- Português
- Assuntos
A morte virou lugar-comum
(crônica de Arnaldo Jabor)
Só se fala em morte, hoje em dia. Quantos
morreram hoje na Síria? Só 130? Ontem foram
200. E na periferia de São Paulo, quantas
chacinas? Só duas, com alguns feridos? Quando
Hannah Arendt cunhou a expressão “banalidade
do mal”, ela não imaginava como a morte se
tornou um fato corriqueiro no mundo atual, sem
os trágicos acordes do Holocausto. Talvez haja
nas matanças banais um desejo de desvendar o
mistério da morte, bem lá no fundo do
inconsciente. Para além de vinganças, busca de
poder ou dinheiro, ódio puro, prazer, há a vontade
de ‘naturalizar’ a morte, de modo que ela deixe de
ser a implacável ceifadora.
Tenho certeza de que os assassinos que passam de moto e metralham inocentes não têm consciência da gravidade de seus feitos – apenas mais um dia divertido de violências. Os filmes americanos buscam o tempo todo essa banalidade: tiros súbitos sem piedade, jorros de sangue ornamentais, a beleza fálica das superarmas automáticas. Nos brutos filmes de ação, nos videogames, nas notícias bombásticas de tragédias há um claro desejo de esquecer a morte, mostrando-a sem parar. Um desejo de matar a morte. Um desejo de entendê-la pela repetição compulsiva. Mas, nunca conseguiremos exorcizála, porque quando ela chega não estamos mais aqui. Gilberto Gil fez uma música genial sobre a morte, onde ele canta, numa toada fúnebre:
“A morte já é depois/ já não haverá ninguém/ como eu aqui agora/ pensando sobre o além. / Já não haverá o além/ o além já será então/ não terei pé nem cabeça/ nem fígado, nem pulmão/ como poderei ter medo/ se não terei coração?” É isso. Só se pode falar da morte pela ausência. Nós apenas saímos do ar. Desaparecemos.
Ela é tão banal que inventamos solenes rituais para dar-lhe consistência, religiões ou crenças materialistas para nos consolar: “O universo é a eternidade. Deus é o universo, a substância. Ele está nas galáxias e no orgasmo, nos buracos negros e no coração batendo…” “Grandes merdas” – penso hoje -, pois quando ela chega acaba a literatura. Aliás, falar sobre a morte também é um lugar-comum – mas agora, é tarde demais para mim -, tenho de ir em frente. Até o grande Guimarães Rosa caiu nessa: “Morremos para provar que vivemos”. O Nelson Rodrigues me perguntava sempre: “Pelo amor de Deus, me explica essa frase! E qual a profundidade de “Viver é muito perigoso?”
A morte só tem “antes”, não tem “depois” – no Ivan Ilitch, do Tolstoi, quando ela chega, acaba o conto. Ele diz no instante final: “A morte acabou”. Dizem que o Muhammad Atta, o terrorista que comandou o ataque às torres de NY, era ateu, mas queria conhecer aquele instante que separava o avião da torre erguida. A morte não está nem aí para nós; ela tem “vida própria”. A gente vai para um lado, o corpo para o outro. Ela nos ignora, nossos méritos, nossas obras. Mais um lugarzinho comum: “Só nos resta viver da melhor maneira possível até o fim. Tem mais é que curtir, gente boa…” Pois é; há muitos anos, pegou fogo no edifício Joelma em São Paulo, torrando dezenas de infelizes. Do prédio em frente, as teleobjetivas fotografaram todas as agonias. Até hoje, lembro-me da foto em cores de um homem de terno, pastinha 007, agachado numa janela do 20.º andar, com o fogo às costas. Seu rosto mostrava a dúvida: “O que é melhor para mim? Morrer queimado ou me jogar?” Ele curtiu até o fim – e se jogou.
O que me chateia é ficar desatualizado. As notícias vão rolar e eu nada saberei. Haverá crises mundiais, filmes que estreiam, músicas novas, e eu ficarei lá embaixo, sem saber das novidades. É insuportável a desinformação dos falecidos. Meu avô me disse uma vez: “Acho triste morrer, seu Arnaldinho, porque nunca mais vou ver a Av. Rio Branco…” Isso me emocionou, pois ele ia diariamente ao centro da cidade, onde tomava um refresco de coco na Casa Simpatia. Por isso, quando me penso morto, eu, que não irei ao meu enterro, de que terei saudades? Ou melhor, que saudades teria se as pudesse ter?
Tenho certeza de que os assassinos que passam de moto e metralham inocentes não têm consciência da gravidade de seus feitos – apenas mais um dia divertido de violências. Os filmes americanos buscam o tempo todo essa banalidade: tiros súbitos sem piedade, jorros de sangue ornamentais, a beleza fálica das superarmas automáticas. Nos brutos filmes de ação, nos videogames, nas notícias bombásticas de tragédias há um claro desejo de esquecer a morte, mostrando-a sem parar. Um desejo de matar a morte. Um desejo de entendê-la pela repetição compulsiva. Mas, nunca conseguiremos exorcizála, porque quando ela chega não estamos mais aqui. Gilberto Gil fez uma música genial sobre a morte, onde ele canta, numa toada fúnebre:
“A morte já é depois/ já não haverá ninguém/ como eu aqui agora/ pensando sobre o além. / Já não haverá o além/ o além já será então/ não terei pé nem cabeça/ nem fígado, nem pulmão/ como poderei ter medo/ se não terei coração?” É isso. Só se pode falar da morte pela ausência. Nós apenas saímos do ar. Desaparecemos.
Ela é tão banal que inventamos solenes rituais para dar-lhe consistência, religiões ou crenças materialistas para nos consolar: “O universo é a eternidade. Deus é o universo, a substância. Ele está nas galáxias e no orgasmo, nos buracos negros e no coração batendo…” “Grandes merdas” – penso hoje -, pois quando ela chega acaba a literatura. Aliás, falar sobre a morte também é um lugar-comum – mas agora, é tarde demais para mim -, tenho de ir em frente. Até o grande Guimarães Rosa caiu nessa: “Morremos para provar que vivemos”. O Nelson Rodrigues me perguntava sempre: “Pelo amor de Deus, me explica essa frase! E qual a profundidade de “Viver é muito perigoso?”
A morte só tem “antes”, não tem “depois” – no Ivan Ilitch, do Tolstoi, quando ela chega, acaba o conto. Ele diz no instante final: “A morte acabou”. Dizem que o Muhammad Atta, o terrorista que comandou o ataque às torres de NY, era ateu, mas queria conhecer aquele instante que separava o avião da torre erguida. A morte não está nem aí para nós; ela tem “vida própria”. A gente vai para um lado, o corpo para o outro. Ela nos ignora, nossos méritos, nossas obras. Mais um lugarzinho comum: “Só nos resta viver da melhor maneira possível até o fim. Tem mais é que curtir, gente boa…” Pois é; há muitos anos, pegou fogo no edifício Joelma em São Paulo, torrando dezenas de infelizes. Do prédio em frente, as teleobjetivas fotografaram todas as agonias. Até hoje, lembro-me da foto em cores de um homem de terno, pastinha 007, agachado numa janela do 20.º andar, com o fogo às costas. Seu rosto mostrava a dúvida: “O que é melhor para mim? Morrer queimado ou me jogar?” Ele curtiu até o fim – e se jogou.
O que me chateia é ficar desatualizado. As notícias vão rolar e eu nada saberei. Haverá crises mundiais, filmes que estreiam, músicas novas, e eu ficarei lá embaixo, sem saber das novidades. É insuportável a desinformação dos falecidos. Meu avô me disse uma vez: “Acho triste morrer, seu Arnaldinho, porque nunca mais vou ver a Av. Rio Branco…” Isso me emocionou, pois ele ia diariamente ao centro da cidade, onde tomava um refresco de coco na Casa Simpatia. Por isso, quando me penso morto, eu, que não irei ao meu enterro, de que terei saudades? Ou melhor, que saudades teria se as pudesse ter?
Não terei saudades de grandes amores, de
megashows da vida de hoje, excessiva e
incessante. Não. Debaixo da terra, terei saudades
de irrelevâncias essenciais, terei saudades de
algumas tardes nubladas de domingo que só o
carioca percebe, tudo parado, com os urubus
dormindo na perna do vento, como dizia o sempre
presente Tom, do radinho do porteiro ouvindo o
jogo, terei saudades do cafezinho nas beiras dos
botequins, de certos tons de roxo e rosa em
Ipanema antes da noite cair, saudades do
cafajestismo poético dos cariocas, saudades dos
raros instantes sem medo ou culpa, de alguns
momentos de felicidade profunda, sem motivo,
apenas pela gratidão de respirar. Não terei
saudades dos fatos e notícias, nada do mundo
febril; só a quietude, o silêncio entre amigos na
paz de um bar, papos de cinéfilo, risos proletários
e camaradagem de subúrbio, do samba que nos
envolve nas rodas pobres com a alegre sabedoria
da desesperança, da Lapa, da Av. Paulista de
noite, do jazz, pernas cruzadas de mulheres
inatingíveis, terrenos baldios de minha infância,
saudades da literatura, do prazer da arte, Fellini,
Shakespeare, de Cantando na Chuva – o maior
hino da alegria americana, saudades de Fred
Astaire dançando Begin the Beguine com Eleanor
Powell, felizes para sempre dentro do universo
estrelado.
Há várias mortes. Há brutas tragédias, fomes
e bombas, horrendos desastres, mas, na morte
óbvia, comum, caseira, só temos duas escolhas:
súbita ou lenta. Você, frágil leitor, qual delas
prefere? O rápido apagar do “abajur lilás” de um
ataque cardíaco ou o lento esvair da vida, sumindo
com morfina? Se eu pudesse escolher, queria morrer como o velho Zorba, o grego, em pé, na
janela, olhando a paisagem iluminada pelo sol da
manhã. E, como ele, dando um berro de
despedida.
Nos brutos filmes de ação, nos videogames,
nas notícias bombásticas de tragédias há um
claro desejo de esquecer a morte, mostrando-a
sem parar. O termo em destaque é
classificado como: