SóProvas


ID
5437381
Banca
Instituto Consulplan
Órgão
Prefeitura de Colômbia - SP
Ano
2021
Provas
Disciplina
Português
Assuntos

O sentido maior

   Quando eu era jovem, um padre dava aulas sobre Tomás de Aquino (1225-1274), doutor da igreja e teólogo global. O tema eram as cinco provas da existência de Deus. Após a exposição, o jesuíta contou, como arremate de uma boa aula, um caso sobre o doutor angélico. Disse que, após o italiano ter escrito coisas profundas e enormes sobre a divindade, teve um êxtase místico e, segundo a narrativa, uma compreensão de Deus além da Razão, além da Escolástica, além de Aristóteles e de toda a gramática possível de um cérebro humano. Ao sair da “divina possessão”, ele emudeceu e resistiu a continuar escrevendo sua já famosa obra. Motivo? Para ele, após o contato com Deus na forma direta que os místicos vivem, o que ele escrevera sob o rigor acadêmico e com base erudita, parecia- -lhe superficial, fraco, pífio, irrelevante e tão distante do que experimentara que ficou abatido. Bem, antes de partir precocemente do mundo, Tomás terminou ditando comentários ao Cântico dos Cânticos, o poema amoroso salomônico que possui dezenas de interpretações. Curioso que a última obra do grande intelectual católico seja sobre o amor.
   A história narrada traz uma questão que sempre me assombrou. Em todos os campos, inúmeras pessoas ao meu redor falam de uma densidade maior atrás do simples discurso ou do sentimento imediato. Sim, você pode ler os mais refinados teólogos, porém, sempre serão pálida sombra do objeto sagrado em si. O mesmo valeria para as emoções humanas como o amor. Romeu indica várias vezes a Julieta (e é correspondido) que as palavras são irrelevantes, que o que eles sentem está além da expressão delas. Já vi discursos semelhantes sobre arte e até sexo. Haveria uma densidade, uma complexidade, algo tão imenso que tudo o que eu possa expressar seria incompleto.
   Sempre desconfiei um pouco da afirmação sobre a densidade extraordinária que tornaria as coisas indizíveis. Por vezes acho que devo ter uma capacidade melhor de expressão ou uma capacidade menor de sentir. Um dos itens explica o fato de eu achar que as coisas são no limite do que consigo expressar e que não possuem uma película que esconde o “mais além” de uma metafísica absoluta.
   A leitura de boas obras sempre me pareceu muito prazerosa, muito, exatamente porque as ideias, a estética da escrita, o encadeamento de personagens ou de fatos e as soluções dos bons autores me seduzem. Uma taça boa de vinho ou uma noite amorosa são extraordinárias pelo que são em si, pelo prazer ali contido, pelas papilas gustativas agraciadas, pelos hormônios atiçados, pelos disparos de adrenalina e outras coisas. Não perco a consciência, não letivo, não transfiguro, não tenho êxtase: apenas gosto e sinto o motivo de eu gostar, alguns surpreendentes. Seria bom em descrever ou ruim em sentir de forma mais densa? Faltaria metafísica ou abundaria consciência? A descrição que alguns fazem de suas experiências sempre me pareceu fascinante e sedutora e profundamente distante do plano no qual eu sinto. Idiossincrasia? Couraça racional? Seria lucidez ou secura? Nunca saberei de fato, mas o vinho sempre pareceu bom, o texto fascinante, o sexo envolvente, o afeto belo, a boa música avassaladora e a paisagem produtora de paz interna. Já chorei de alegria diante de experiências lindas como um quadro que eu desejava conhecer ou quando desci ao Grand Canyon nos Estados Unidos. Eram lágrimas provocadas pela emoção de beleza, uma invasão positiva de muitos bons sentimentos que antigas expectativas estimularam. Era emoção, não transcendência que me derrubasse ao solo impactado pelo eterno. Vários filósofos chamaram isso de maravilhar-se, uma suspensão momentânea da racionalidade junto de incapacidade de narrar o experienciado. Mas, passado alguns instantes, recuperamos a lógica narrativa. Eu estava feliz porque era bom estar ali, porque eu desejara estar ali, porque eu me preparara para estar ali e porque, enfim estando, se fechava um ciclo de ansiedade desejo-prazer produzindo o momento único e... lacrimoso. Foi muito bom, excelente até, todavia foi aquilo e eu posso descrever o início, o meio e o fim daquele instante. Por vezes lembro-me da experiência de um “banho xamânico” em Oaxaca, no México. A guia da experiência dizia que aspirássemos as plantas naquela sauna e que imaginássemos a luz lilás sobre nós. Aluno fiel, eu aspirava a planta acre que ela jogara às brasas e imaginava a luz lilás. Ao final de meia hora de exercício imaginativo, ela me perguntou o que eu tinha sentido e eu disse: “Um cheiro forte dessa planta”. Ela insistia: “E?”. “Só”, eu respondia à desolada senhora. Eu sentira o cheiro e imaginara a luz. Foi minha experiência xamânica. Na verdade, é minha experiência de vida. As coisas são no limite do que existem, sem energias ou algo muito mais denso escondido pelo véu do discurso. Onde alguns descrevem alguém de “energia pesada”, eu vejo um chato agressivo. Não há uma “aura”, apenas frases desagradáveis ou reclamações incessantes. Onde identificam “vampiros de energia” eu vejo alguém irritante. Seria a mesma coisa? Volto ao que eu sinto (sem fazer disso uma definição de valor universal): as coisas são no limite do que existem. Dou a elas sentido, simbolismo, signos aleatórios e que dependem da minha imaginação, sem “energia”. Essa é imensa solidão da consciência, ou, ao menos, da minha consciência. Uma boa semana para todos.

(KARNAL, Leandro. Sentido maior. O Estado de São Paulo, São Paulo,
19/01/2020. Caderno 2, p. C2.)

A palavra “que” pode desempenhar diferentes funções morfossintáticas na Língua Portuguesa. Assinale a alternativa em que ela desempenha a função de pronome relativo e, por isso, introduz uma oração adjetiva.

Alternativas
Comentários
  • GABARITO A

    A história narrada traz uma questão que sempre me assombrou

    A história narrada traz uma questão a qual sempre me assombrou.

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    PRONOME RELATIVO - QUE:

    • é invariável;
    • refere-se a pessoas ou coisas;
    • é chamado de relativo universal, pois pode - geralmente - ser utilizado em substituição de todos os outros relativos.
    • substituível pelo variável o qual

    fonte: Fernando Pestana.

  • Na primeira alternativa, a partícula "que" resgata um substantivo e introduz uma oração subordinada adjetiva restritiva (sem vírgula). Nas demais opções de resposta, são conjunções subordinativas integrantes e introduzem orações subordinadas substantivas.

    Letra A

  • A questão é sobre a palavra "que" e quer saber em qual alternativa a palavra "que" desempenha a função de pronome relativo e, por isso, introduz uma oração adjetiva. Vejamos:

     .

    A palavra "que" pode ser:

     

    Conjunção integrante: introduz oração subordinada substantiva. É mero conectivo oracional. As conjunções integrantes são representadas pelas conjunções "QUE" e "SE”. A oração pode ser trocada por "isso, nisso, disso". Ex.: Necessito de que me ajude. (= Necessito disso).

    Pronome relativo: introduz oração subordinada adjetiva. Exerce função sintática de sujeito, obj. direto, obj. indireto, complemento nominal, predicativo do sujeito ou aposto. A palavra pode ser trocada por "o qual, a qual, os quais, as quais". São pronomes relativos: que, quem, onde, o qual (a qual, os quais, as quais), quanto (quanta, quantos, quantas) e cujo (cuja, cujos, cujas). Ex.: O livro que li era péssimo. (que = o qual)

     .

    A) “A história narrada traz uma questão que sempre me assombrou.”

    Certo. "Que", nesse caso, é pronome relativo, retoma "uma questão", pode ser substituído por "a qual" e introduz uma oração subordinada adjetiva restritiva (sem vírgula).

     .

    B) “Romeu indicava várias vezes a Julieta (e é correspondido) que as palavras são irrelevantes [...]”.

    Errado. "Que", nesse caso, é conjunção integrante e equivale a "ISSO" (Romeu indicava "ISSO" = que as palavras são...)

     .

    C) “por vezes acho que devo ter uma capacidade menor de expressão ou uma capacidade menor de sentir.”

    Errado. "Que", nesse caso, é conjunção integrante e equivale a "ISSO" (Por vezes acho "ISSO" = que devo ter uma capacidade...)

     .

    D) “Disse que, após o italiano ter escrito coisas profundas e enormes sobre a divindade, teve um êxtase místico […]”.

    Errado. "Que", nesse caso, é conjunção integrante e equivale a "ISSO" (Disse "ISSO" = que após o italiano...)

     .

    Gabarito: Letra A

  • “A história narrada traz uma questão que sempre me assombrou.”

    O pronome relativo ''que'' está retomando o substantivo ''questão''.

    “A história narrada traz uma questão que (a qual) sempre me assombrou.”

    “A história narrada traz uma questão.

    Uma questão sempre me assombrou.”

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    “Romeu indicava várias vezes a Julieta (e é correspondido) que as palavras são irrelevantes [...]”.

    Elimine o adjunto adverbial e a oração entre parênteses.

    Romeu indicava a Julieta que as palavras são irrelevantes

    Indicava algo ( que as palavras são irrelevantes) a alguém (a Julieta).

    Temos uma conjunção integrante.

    Indicava isso a ela.

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    “por vezes acho que devo ter uma capacidade menor de expressão ou uma capacidade menor de sentir.”

    Eu acho isso.

    que devo ter uma capacidade menor de expressão. (O ''que'' funciona como conjunção integrante.)

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    “Disse que, após o italiano ter escrito coisas profundas e enormes sobre a divindade, teve um êxtase místico […]”.

    Eu disse isso.

    que teve um êxtase místico. (O ''que'' funciona como conjunção integrante.)

  • Para acertar este tipo de questão que perguntam sobre pronome relativo/conjunção integrante basta você utilizar o macete de trocar o que

    Quando a questão pedir para você buscar:

    Pronome relativo: Trocar o que por o/a qual, se ele se encaixar então esse que será pronome relativo.DICA: NUNCA será pronome relativo o "que" após um verbo.

    Conjunção integrante: Quando ao trocar o que seja possível encaixar o "isso" ou "disso".

    Dica: No caso da conjunção integrante virá após verbos

  • Truque clássico para identificar a diferença entre pronome relativo e conjunção integrante e que provavelmente você já conhece. Basta substituir o "que" por "o qual/a qual" e se fizer sentido será pronome relativo. Agora se a substituição pela palavra "isso" fizer mais sentido então se trata de uma conjunção integrante. Bons estudos!

    Gabarito: A

  • Regra:

    Que depois de verbo= conjunção integrante.

    Que depois de substantivo= pronome relativo.

    Ex.: Disse que ( disse isso)

    Ex.: Pedro, que é filho de Maria, visitou a mãe.

    Pedro, o qual .........

    Letra A

  • GABARITO: A.

    Orações Subordinadas Adjetivas

    As orações subordinadas adjetivas desempenham função de adjetivo, isto é, elas subordinam-se a um nome (substantivo, pronome substantivo, numeral substantivo) e o caracterizam, porque é esta a função do adjetivo.

    Elas são introduzidas, quando desenvolvidas, por pronomes relativos. Elas desempenham a função de adjunto adnominal.

    São classificadas em:

    Explicativas: vêm isoladas por vírgulas, travessões ou parênteses e, semanticamente, referem-se à totalidade do referente. (toda parte)

    Restritivas: não vêm isoladas por vírgulas, travessões ou parênteses e o atributo refere-se a uma parte do seu referente. (nem todos)

  • “Romeu indicava várias vezes a Julieta (e é correspondido) que as palavras são irrelevantes [...]”.

    E a crase?