Chaplin e Camões na chuva
Eduardo Escorel
1.° Meia hora de chuva moderada foi suficiente para
alagar a rua Luís de Camões, no centro do Rio. Para ir a
pé até lá, saindo da Rua da Assembleia, foi preciso
atravessar a Avenida Rio Branco, seguir pela rua da
Carioca, dobrar na Ramalho Ortigão, contornar a igreja
São Francisco de Paula, passar em frente ao Real
Gabinete Português de Leitura, cruzar a avenida Passos e
chegar ao nº 68, sede do Centro Municipal de Arte Helio
Oiticica, instalado em um edifício neoclássico, onde foi
aberta em 6 de março a exposição Chaplin e sua imagem.
2.° No caminho, além do aguaceiro, pessoas vindo
em sentido contrário, ou seguindo na mesma direção,
mas andando devagar – muitas com dificuldade de seguir
em linha reta, tornaram o percurso ainda mais difícil. Isso
sem falar das barracas dos ambulantes ocupando a maior
parte das calçadas, e dos vendedores apregoando
guarda-chuvas chineses por dez reais.
3.° Não ficar encharcado de todo, nem molhar demais
os pés, requereu paciência – uma parada de meia-hora na
entrada de uma farmácia no Largo de São Francisco – e
perícia, buscando proteção debaixo de um pequeno
guarda-chuva em decomposição. E na chegada, antes de
poder subir os degraus de entrada do Centro Municipal de
Arte Helio Oiticica, foi necessário atravessar a estreita e
alagada Luís de Camões na ponta dos pés.
4.° Logo na entrada, a falta de sinalização levou a
perguntar por onde seguir a uma guarda desabada numa
cadeira. Em tom incompreensível à primeira escuta, ela
indicou com má vontade, e certo ar de desprezo pela
desorientação do visitante, a porta em frente como a de
acesso à exposição e fez a caridade de informar que
ocupa salas do primeiro e segundo andar.
5.° Uma primeira suposição provou ser infundada –
não há interdição para entrar com guarda-chuva e pasta
molhados, circunstância inédita em locais do gênero
mundo afora. Outra, ainda menos auspiciosa, também
caiu por terra. Ao contrário do que imaginara durante a
travessia aquática do centro da cidade, havia algumas
pessoas vendo a exposição, por volta de meio-dia, nas
amplas salas, na pequena rua fora de mão, numa sexta-feira
chuvosa.
6.° Não eram muitas, mas pareciam interessadas,
dando impressão de estarem vendo pela primeira vez
painéis fotográficos e trechos de filmes de Chaplin
projetados em monitores.
7.° A modesta exposição não passa disso – uma
série de painéis e alguns trechos de filmes exibidos em
monitores –, sendo surpreendente que instituições tão
respeitáveis, como a Cinemateca de Bologna, por
exemplo, difundam pelo mundo mostra tão pobre, muito
aquém, por exemplo, do que é possível ver nas duas
horas e meia do documentário O Chaplin que Ninguém Viu
(Unknown Chaplin), de 1983, realizado por Kevin
Brownlow e David Gill para ser exibido na televisão, e
disponível em DVD desde 2005. Como introdução a
Chaplin, mais valeria promover em praça pública sessões
gratuitas desse documentário.
8.° O Chaplin que Ninguém Viu inclui imagens da
coleção particular de Chaplin e demonstra seu
perfeccionismo através das filmagens dos exaustivos
ensaios para chegar à gag perfeita, e das várias tomadas
feitas de uma mesma cena até obter a encenação mais
eficaz. Nessa época, o custo de produção e do filme
virgem ainda não haviam tornado proibitivo descobrir
filmando o que se queria fazer.
9.° Percorrida a exposição, com decepção crescente
a cada sala, eis que uma risada distante se fez ouvir,
parecendo vir do primeiro andar. Voltando sobre os
próprios passos, descendo a sinuosa escadaria
monumental com corrimão de madeira envernizada, numa
das primeiras salas, lá estava a origem do riso: um rapaz
de fones nos ouvidos, postado diante de um monitor,
divertindo-se à grande.
10.° O motivo da alegria era a sequência da luta de
boxe de Luzes da cidade (1931). Disponível no Youtube, é
possível comprovar a perenidade do humor chapliniano,
sem correr o risco de se molhar.
11.° A exposição Chaplin e sua imagem estará aberta,
até 29 de abril, no Centro Municipal de Arte Helio Oiticica.
Para quem não tiver acesso ao Youtube ou não puder ver
O Chaplin que Ninguém Viu, pode valer a pena. As risadas
do rapaz comprovam que ressalvas feitas à exposição
talvez não façam sentido.
12.° Evitem apenas dias de chuva para não ficarem
com os pés encharcados.
Revista Piauí, edição 66.
As orações reduzidas de gerúndio (em destaque no texto) são, na ordem em que aparecem,