Texto I 
                            Não canse quem te quer bem      
                                                                                     (Martha Medeiros)
              Foi  durante  o  programa  Saia  Justa  que  a  atriz  Camila  Morgado,  discutindo  sobre  a  chatice  dos  outros  (e  a  nossa  própria), lançou a frase: “Não canse quem te quer bem”. Diz ela  que ouviu  isso em algum  lugar, mas enquanto não consegue  lembrar a fonte, dou a ela a posse provisória desse achado.
              Não  canse  quem  te  quer  bem. Ah,  se  conseguíssemos  manter  sob  controle  nosso  ímpeto  de  apoquentar. Mas  não.  Uns mais,  outros menos,  todos  passam  do  limite  na  arte  de  encher  os  tubos. Ou  contando  uma  história  que  não  acaba  nunca, ou pior: contando uma história que não acaba nunca  cujos  protagonistas  ninguém  jamais  ouviu  falar.  Deveria  ser  crime inafiançável ficar contando longos casos sobre gente que  não conhecemos e por quem não temos o menor interesse. Se  for história de doença, então, cadeira elétrica.
              Não  canse  quem  te  quer  bem.  Evite  repetir  sempre  a  mesma  queixa.  Desabafar  com  amigos,  ok.  Pedir  conselho,  ok  também,  é  uma  demonstração  de  carinho  e  confiança.  Agora, ficar anos alugando os ouvidos alheios com as mesmas  reclamações, dá licença. Troque o disco. Seus amigos gostam  tanto de você, merecem saber que você é capaz de diversificar  suas lamúrias.
              Não  canse  quem  te  quer  bem. Garçons  foram  treinados  para  te  querer  bem.  Então  não  peça  para  trocar  todos  os  ingredientes do risoto que você solicitou - escolha uma pizza e  fim.
              Seu namorado te quer muito bem. Não o obrigue a esperar  pelos 20 vestidos que você vai experimentar antes de sair -  pense antes no que vai usar. E discutir a relação, só uma vez  por ano, se não houver outra saída.
              Sua namorada  também  te quer muito bem. Não a amole  pedindo para ela explicar de onde conhece aquele rapaz que  cumprimentou  na  saída  do  cinema.  Ciúme  toda  hora,  por  qualquer bobagem, é esgotante.
              Não  canse  quem  te  quer  bem.  Não  peça  dinheiro  emprestado  pra  quem  vai  ficar  constrangido  em  negar. Não  exija  uma  dedicatória  especial  só  porque  você  é  parente  do  autor do livro. E não exagere ao mostrar fotografias. Se o local  que você visitou é realmente incrível, mostre três, quatro no  máximo. Na verdade,  fotografia a gente só mostra pra mãe e  para aqueles que também aparecem na foto.
              Não  canse  quem  te  quer  bem.  Não  faça  seus  filhos  demonstrarem dotes artísticos (cantar, dançar, tocar violão) na  frente das visitas. Por amor a eles e pelas visitas.
                Implicâncias quase sempre são demonstrações de afeto.  Você  não  implica  com  quem  te  esnoba,  apenas  com  quem  possui  laços  fraternos. Se um amigo é barrigudo, será sobre  a barriga dele que  faremos piada. Se  temos uma amiga que  sempre  chega  atrasada,  o  atraso  dela  será  brindado  com  sarcasmo.  Se  nosso  filho  é  cabeludo,  “quando  é  que  tu  vai  cortar esse cabelo, garoto?” será a pergunta que  faremos de  segunda  a  domingo.  Implicar  é  uma maneira  de  confirmar  a  intimidade. Mas os íntimos poderiam se elogiar, pra variar.
              Não canse quem  te quer bem. Se não consegue  resistir  a  dar  uma  chateada,  seja  mala  com  pessoas  que  não  te  conhecem.  Só  esses  poderão  se  afastar,  cortar  o  assunto,  te dar um chega pra  lá. Quem  te quer bem vai  te ouvir até o  fim e ainda vai fazer de conta que está se divertindo. Coitado.  Prive-o desse infortúnio. Ele não tem culpa de gostar de você.”
 
Marta Medeiros é colunista de um jornal de grande circulação. Nesse sentido, seus textos apresentam características que buscam uma maior aproximação com o leitor. Assinale a opção cujo recurso apontado NÃO represente um comentário correto no cumprimento desse papel.