Texto 10
A complicada arte de ver
Ela entrou, deitou-se no divã e disse: "Acho que estou
ficando louca" Eu fiquei em silêncio aguardando que
ela me revelasse os sinais da sua loucura. "Um dos
meus prazeres é cozinhar. Vou para a cozinha, corto
as cebolas, os tomates, os pimentões - é uma alegria!
Entretanto, faz uns dias, eu fui para a cozinha para fazer
aquilo que já fizera centenas de vezes: cortar cebolas.
Ato banal sem surpresas. Mas, cortada a cebola, eu olhei
para ela e tive um susto. Percebi que nunca havia visto
uma cebola. Aqueles anéis perfeitamente ajustados, a
luz se refletindo neles: tive a impressão de estar vendo
a rosácea de um vitral de catedral gótica. De repente, a
cebola, de objeto a ser comido, se transformou em obra
de arte para ser vista! E o pior é que o mesmo aconteceu
quando cortei os tomates, os pimentões... Agora,
tudo o que vejo me causa espanto."
Ela se calou, esperando o meu diagnóstico. Eu
me levantei, fui à estante de livros e de lá retirei as
"Odes Elementales" de Pablo Neruda. Procurei a "Ode
à Cebola" e lhe disse: "Essa perturbação ocular que
a acometeu é comum entre os poetas. Veja o que
Neruda disse de uma cebola igual àquela que lhe
causou assombro: 'Rosa de água com escamas de
cristal. Não, você não está louca. Você ganhou olhos
de poeta... Os poetas ensinam a ver".
Ver é muito complicado. Isso é estranho porque os
olhos, de todos os órgãos dos sentidos, são os de mais
fácil compreensão científica. A sua física é idêntica à
física óptica de uma máquina fotográfica: o objeto do
lado de fora aparece refletido do lado de dentro. Mas
existe algo na visão que não pertence à física.
William Blake sabia disso e afirmou: "A árvore que o
sábio vê não é a mesma árvore que o tolo vê" Sei disso
por experiência própria. Quando vejo os ipês floridos,
sinto-me como Moisés diante da sarça ardente: ali está
uma epifania do sagrado. Mas uma mulher que vivia
perto da minha casa decretou a morte de um ipê que
florescia à frente de sua casa porque ele sujava o chão,
dava muito trabalho para a sua vassoura. Seus olhos
não viam a beleza. Só viam o lixo.
Adélia Prado disse: "Deus de vez em quando me
tira a poesia. Olho para uma pedra e vejo uma pedra"
Drummond viu uma pedra e não viu uma pedra. A
pedra que ele viu virou poema.
ALVES, Rubem. A complicada arte de ver. Disponível em:
Acessado em 31 de março de 2014.
Considere o trecho abaixo extraído do texto 10.
"Um dos meus prazeres é cozinhar. Vou para a cozinha,
corto as cebolas, os tomates, os pimentões - é uma
alegria! Entretanto, faz uns dias, eu fui para a cozinha
para fazer aquilo que já fizera centenas de vezes: cortar
cebolas. Ato banal sem surpresas. Mas, çortada_a_
cebola, eu olhei para ela e tive um susto. Percebi que
nunca havia visto uma cebola. Aqueles anéis perfeitamente
ajustados, a luz se refletindo neles: tive a
impressão de estar vendo a rosácea de um vitral de
catedral gótica. De repente, a cebola, de objeto a ser
comido, se transformou em obra de arte para ser vista!
E o pior é que o mesmo aconteceu quando cortei os
tomates, os pimentões... Agora, tudo o que vejo me
causa espanto."
Analise as afirmativas a seguir:
1. A informação do período introduzido por
"entretanto" contrasta com a informação do
período precedente.
2. O segmento "cortada a cebola" é uma oração
subordinada adverbial temporal reduzida de
particípio.
3. As formas verbais "fizera" e "havia visto" correspondem
ao tempo verbal pretérito mais-que-
-perfeito, podendo ser reescritas como "tinha
feito" e "vira', respectivamente, mantendo-se o
mesmo valor temporal.
4. A expressão "o mesmo" é uma retomada por
encapsulamento, cujo escopo é o trecho
"Percebi que [...] para ser vista!".
5. "Agora" está funcionando como operador
argumentativo que introduz uma conclusão
relativamente a argumentos apresentadas nos
enunciados anteriores.
Assinale a alternativa que indica todas as afirmativas
corretas.