Há dessas reminiscências que não descansam antes que a pena ou a língua as publique. Um antigo dizia arrenegar
de conviva que tem boa memória. A vida é cheia de tais convivas, e eu sou acaso um deles, conquanto a prova de ter a
memória fraca seja exatamente não me acudir agora o nome de tal antigo; mas era um antigo, e basta.
Não, não, a minha memória não é boa. Ao contrário, é comparável a alguém que tivesse vivido por hospedarias, sem
guardar delas nem caras nem nomes, e somente raras circunstâncias. A quem passe a vida na mesma casa de família,
com os seus eternos móveis e costumes, pessoas e afeições, é que se lhe grava tudo pela continuidade e repetição.
Como eu invejo os que não esqueceram a cor das primeiras calças que vestiram! Eu não atino com a das que enfiei
ontem. Juro só que não eram amarelas porque execro essa cor; mas isso mesmo pode ser olvido e confusão.
E antes seja olvido que confusão; explico-me. Nada se emenda bem nos livros confusos, mas tudo se pode meter
nos livros omissos. Eu, quando leio algum desta outra casta, não me aflijo nunca. O que faço, em chegando ao fim, é
cerrar os olhos e evocar todas as coisas que não achei nele. Quantas ideias finas me acodem então! Que de reflexões
profundas! Os rios, as montanhas, as igrejas que não vi nas folhas lidas, todos me aparecem agora com as suas águas,
as suas árvores, os seus altares, e os generais sacam das espadas que tinham ficado na bainha, e os clarins soltam as
notas que dormiam no metal, e tudo marcha com uma alma imprevista.
É que tudo se acha fora de um livro falho, leitor amigo. Assim preencho as lacunas alheias; assim podes também
preencher as minhas.
(Assis, de Machado. Dom Casmurro – Editora Scipione – 1994 – pág. 65)
O emprego da palavra “o” em “O que faço, em chegando ao fim...” (3º§) é o mesmo que se encontra em: