- ID
- 3813652
- Banca
- IF SUL - MG
- Órgão
- IF Sul - MG
- Ano
- 2017
- Provas
- Disciplina
- Português
- Assuntos
Nós, os brasileiros
Uma editora europeia me pede que traduza poemas de autores estrangeiros sobre o Brasil. Como
sempre, eles falam da Floresta Amazônica, uma floresta muito pouco real, aliás. Um bosque poético,
com “mulheres de corpos alvíssimos espreitando entre os troncos das árvores, [...]”. Não faltam flores
azuis, rios cristalinos e tigres mágicos.
Traduzo os poemas por dever de ofício, mas com uma secreta – e nunca realizada – vontade de inserir
ali um grãozinho de realidade. Nas minhas idas (nem tantas) ao exterior, onde convivi, sobretudo, com
escritores ou professores e estudantes universitários – portanto, gente razoavelmente culta – eu fui
invariavelmente surpreendida com a profunda ignorância a respeito de quem, como e o que somos. – A
senhora é brasileira? Comentaram espantados alunos de uma universidade americana famosa. – Mas
a senhora é loira!
Depois de ler, num congresso de escritores em Amsterdã, um trecho de um dos meus romances
traduzido em inglês, ouvi de um senhor elegante, dono de um antiquário famoso, que segurou comovido
minhas duas mãos: – Que maravilha! Nunca imaginei que no Brasil houvesse pessoas cultas! Pior ainda,
no Canadá alguém exclamou incrédulo: – Escritora brasileira? Ué, mas no Brasil existem editoras? A
culminância foi a observação de uma crítica berlinense, num artigo sobre um romance meu editado por
lá, acrescentando, a alguns elogios, a grave restrição: “porém não parece um livro brasileiro, pois não
fala nem de plantas nem de índios nem de bichos”.
Diante dos três poemas sobre o Brasil, esquisitos para qualquer brasileiro, pensei mais uma vez que
esse desconhecimento não se deve apenas à natural (ou inatural) alienação estrangeira quanto ao
geograficamente fora de seus interesses, mas também a culpa é nossa. Pois o que mais exportamos de
nós é o exótico e o folclórico.
Em uma feira do livro de Frankfurt, no espaço brasileiro, o que se via eram livros (não muito bem
arrumados), muita caipirinha na mesa e televisões mostrando carnaval, futebol, praia e mato. E eu,
mulher essencialmente urbana, escritora das geografias interiores de meus personagens eróticos,
senti-me tão deslocada quanto um macaco em uma loja de cristais. Mesmo que tentasse explicar,
ninguém acreditaria que eu era tão brasileira quanto qualquer negra de origem africana vendendo
acarajé nas ruas de Salvador. Porque o Brasil é tudo isso. E nem a cor de meu cabelo e olhos, nem meu
sobrenome, nem os livros que li na infância, nem o idioma que falei naquele tempo, além do português,
fazem-me menos nascida e vivida nesta terra de tão surpreendentes misturas: imensa, desaproveitada,
instigante e (por que ter medo da palavra?) maravilhosa.
(Luft, Lya. Pensar e transgredir. Rio de Janeiro: Record, 2005, pág. 49 – 51)
(...) porém não parece um livro brasileiro, pois não fala nem de plantas (...)
Os articuladores destacados podem ser substituídos, sem prejuízo do significado original no texto, por: