- ID
- 4913128
- Banca
- FUMARC
- Órgão
- PC-MG
- Ano
- 2013
- Provas
-
- FUMARC - 2013 - PC-MG - Técnico Assistente da Polícia Civil - Consultório Dentário
- FUMARC - 2013 - PC-MG - Técnico Assistente da Polícia Civil - Técnico de Enfermagem
- FUMARC - 2013 - PC-MG - Técnico Assistente da Polícia Civil - Técnico em Patologia Clínica
- FUMARC - 2013 - PC-MG - Técnico Assistente da Polícia Civil - Técnico em Radiologia
- Disciplina
- Português
- Assuntos
INSTRUÇÃO: Leia com atenção o Texto para responder a questão.
TEXTO
O mais terrível
Luis Fernando Veríssimo
O mais terrível não era a menina me chamando de "tio" e pedindo um trocado, ela de pé no chão
no asfalto e eu no meu carro de bacana. O mais terrível não era eu escolhendo a cara e a voz para dizer que não tinha trocado, desculpe, como se a vergonha tivesse um protocolo que a absolvesse. O
mais terrível foi nem a naturalidade com que ela cuspiu na minha cara. O mais terrível foi que ela era
tão pequena que a cusparada não me atingiu.
Somos boas pessoas, bons cidadãos e bons pais, mas somos tios relapsos. Nossas sobrinhas e
nossos sobrinhos enchem as ruas de nossas cidades, cercam nossos carros, invadem nossas vidas e
insistem que são nossa família, e não temos nada para lhes dar ou dizer, além de esmola ou "desculpe". Na família brasileira "tios" e sobrinhos têm um diálogo de ameaça e medo, revolta e remorso, e
poucas palavras. Nenhum consolo possível, nenhuma esperança, nenhuma explicação. O que dizer a
uma sobrinha cuja cabeça mal chega à janela do carro e tenta cuspir na cara do tio? Feio. Falta de educação. Papai do céu castiga. Paciência, minha filha, este é apenas um ciclo econômico e a nossa geração foi escolhida para este vexame, você aí desse tamanho pedindo esmola e eu aqui sem nada para te
dizer, agora afasta que abriu o sinal. Não pergunte ao titio quem fez a escolha, é tudo muito complicado
e, mesmo, você não entenderia a teoria. Vá cheirar cola, para passar. Vá morrer, para esquecer. Ou vá
crescer, para me matar na próxima esquina.
A história, dizem, terminou, e os mocinhos ganharam. Os realistas, os antiutópicos, os racionais.
Ficou provado que a solidariedade é antinatural e que cada um deve cuidar dos apetites dos seus. Ou
seja: ninguém é "tio" de ninguém. A família humana é um mito, o sofrimento alheio é um estorvo e se a
miséria à tua volta te incomoda, compra uma antena parabólica. Ninguém é insensível, dizem os mocinhos, mas a compaixão não funciona. Todos esses anos de convivência com a dor dos outros, que deviam ter nos educado para a compaixão, nos educaram para a autodefesa, para cuspir primeiro. Os
bons sentimentos faliram, dizem os mocinhos. Confiemos o futuro ao mercado, que não tem sentimentos, que tritura gerações entre seus dedos invisíveis, pra que se envolver? Afasta do carro que abriu o
sinal.
Mas mais terrível do que tudo é eu ficar aqui, escolhendo frases para encher o papel, até cuidando o estilo, já que é domingo. Como se fizesse alguma diferença. Como se isso fosse nos salvar, o
tio da sua impotência e cumplicidade e a sobrinha anônima do seu destino. Desculpe.
Fonte: VERÍSSIMO, Luis Fernando; FONSECA, Joaquim da. Traçando Porto Alegre. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1995, p. 87-88.
“Paciência, minha filha, este é apenas um ciclo econômico e a nossa geração foi escolhida para este vexame,
você aí desse tamanho pedindo esmola e eu aqui sem nada para te dizer, agora afasta que abriu o sinal.”
No período acima, as vírgulas foram empregadas em “Paciência, minha filha, este é [...]”, para separar