SóProvas


ID
5086483
Banca
Marinha
Órgão
EFOMM
Ano
2020
Provas
Disciplina
Português
Assuntos

Um caso de burro

Machado de Assis

    Quinta-feira à tarde, pouco mais de três horas, vi uma coisa tão interessante, que determinei logo de começar por ela esta crônica. Agora, porém, no momento de pegar na pena, receio achar no leitor menor gosto que eu para um espetáculo, que lhe parecerá vulgar, e porventura torpe. Releve a importância; os gostos não são iguais.
    Entre a grade do jardim da Praça Quinze de Novembro e o lugar onde era o antigo passadiço, ao pé dos trilhos de bondes, estava um burro deitado. O lugar não era próprio para remanso de burros, donde concluí que não estaria deitado, mas caído. Instantes depois, vimos (eu ia coin run amigo), vimos o burro levantar a cabeça e meio corpo. Os ossos furavam-lhe a pele, os olhos meio mortos fechavam-se de quando em quando. O infeliz cabeceava, mais tão frouxamente, que parecia estar próximo do fim.
    Diante do animal havia algum capím espalhado e uma lata com água. Logo, não foi abandonado inteiramente; alguma piedade houve no dono ou quern quer que seja que o deixou na praça, com essa última refeição à vista. Não foi pequena ação. Se o autor dela é homem que leia crônicas, e acaso ler esta, receba daqui um aperto de mão. O burro não comeu do capim, nem bebeu da água; estava já para outros capins e outras águas, em campos mais largos e eternos, Meia dúzia de curiosos tinha parado ao pé do animal. Um deles, menino de dez anos, empunhava uma vara, e se não sentia o desejo de dar com ela na anca do burro para espertá-lo, então eu não sei conhecer meninos, porque ele não estava do lado do pescoço, mas justamente do lado da anca. Dígase a verdade; não o fez - ao menos enquanto ali estive, que foram poucos minutos, Esses poucos minutos, porém, valeram por uma hora ou duas. Se há justiça na Terra valerão por um século, tal foi a descoberta que me pareceu fazer, e aqui deixo recomendada aos estudiosos. 
    O que me pareceu, é que o burro fazia exame de consciência. Indiferente aos curiosos, como ao capim e à água, tinha 110 olhar a expressão dos meditativos. Era um trabalho interior e profundo. Este remoque popular por pensar morreu um burro mostra que o fenômeno foi mal entendido dos que a princípio o viram; o pensamento não é a causa da morte, a morte é que o torna necessário. Quanto à matéria do pensamento, não há dúvidas que é o exame da consciência. Agora, qual foi o exame da consciência daquele burro, é o que presumo ter lido no escasso tempo que ali gastei. Sou outro Champollion, porventura maior; não decifrei palavras escritas,mas ideias íntimas de criatura que não podia exprimi-las verbalmente.
        E diria o burro consigo:
    "Por mais que vasculhe a consciência, não acho pecado que mereça remorso. Não furtei, não menti, não matei, não caluniei, não ofendi nenhuma pessoa. Em toda a minha vida, se dei três coices, foi o mais, isso mesmo antes haver aprendido maneiras de cidade e de saber o destino do verdadeiro burro, que é apanhar e calar. Quando ao zurro, usei dele como linguagem. Ultimamente é que percebi que me não entendiam, e continuei a zurrar por ser costume velho, não com ideia de agravar ninguém. Nunca dei com homem no chão. Quando passei do tílburi ao bonde, houve algumas vezes homem morto ou pisado na rua, mas a prova de que a culpa não era minha, é que nunca segui o cocheiro na fuga; deixava-me estar aguardando autoridade." 
    "Passando à ordem mais elevada de ações, não acho em mim a menor lembrança de haver pensado sequer na perturbação da paz pública. Além de ser a minha índole contrária a arruaças, a própria reflexão me diz que, não havendo nenhuma revolução declarado os direitos do burro, tais direitos não existem. Nenhum golpe de estado foi dado em favor dele; nenhuma coroa os obrigou. Monarquia, democracia, oligarquia, nenhuma forma de governo, teve em conta os interesses da minha espécie. Qualquer que seja o regime, ronca o pau. O pau é a minha instituição um pouco temperada pela teima que é, ein resumo, o meu único defeito. Quando não teimava, mordia o freio dando assim um bonito exemplo de submissão e conf ormidade. Nunca perguntei por sóis nem chuvas; bastava sentir o freguês no tílburi ou o apito do bonde, para sair logo. Até aqui os males que não fiz; vejamos os bens que pratiquei."
    ''A mais de uma aventura amorosa terei servido, levando depressa o tílburi e o namorado à casa da namorada - ou simplesmente empacando em lugar onde o moço que ia ao bonde podia mirar a moça que estava na janela. Não poucos devedores terei conduzido para longe de um credor importuno. Ensinei filosofia a muita gente, esta filosofia que consiste na gravidade do porte e na quietação dos sentidos. Quando algum homem, desses que chamam patuscas, queria fazer rir os amigos, fui sempre em auxílio deles, deixando que me dessem tapas e punhadas na cara. Em fim...
    Não percebi o resto, e fui andando, não menos alvoroçado que pesaroso. Contente da descoberta, não podia furtar-me à tristeza de ver que um burro tão bom pensador ia morrer. A consideração, porém, de que todos os burros devem ter os mesmos dotes principais, fez-me ver que os que ficavam não seriam menos exemplares do que esse. Por que se não investigará mais profundamente o moral do burro? Da abelha já se escreveu que é superior ao homem, e da formiga também, coletivamente falando, isto é, que as suas instituições políticas são superiores às nossas, mais racionais. Por que não sucederá o mesmo ao burro, que é maior? 
    Sexta-feira, passando pela Praça Quinze de Novembro, achei o animal já morto.
    Dois meninos, parados, contemplavam o cadáver, espetáculo repugnante; mas a infância, corno a ciência, é curiosa sem asco. De tarde já não havia cadáver nem nada. Assim passam os trabalhos deste inundo. Sem exagerar. o mérito do finado, força é dizer que, se ele não inventou a pólvora, também não inventou a dinamite. Já é alguma coisa neste final de século. Requiescat in pace. 

Assinale a opção ein que a presença de vírgula(s) se justifica por se tratar de um aposto.

Alternativas
Comentários
  • Aposto: termo de natureza explicativa que se refere a um antecedente. Opera separado por virgulas ou pausas equivalentes.

  • GABARITO - D

    "Um deles, menino de dez anos, empunhava uma vara, e se não sentia o desejo de dar com ela na anca do b para espertá-lo [... ]"

    aposto é um termo que amplia, resume ou explica o conteúdo de outro termo.

    Aqui temos um aposto explicativo.

  • Aposto

    É um termo que amplia, explica, desenvolve ou resume o conteúdo de outro termo.

    O aposto classifica-se em:

    I – explicativo: Raquel, contadora da firma, está viajando. Só queria algo: apoio. Um trabalho – tua monografia – foi premiado. Obs.: O aposto explicativo pode vir com vírgulas, travessões, parênteses ou dois-pontos.

    II - enumerativo ou distributivo: Ganhei dois presentes: uma joia especial e um livro raro. Suas reivindicações incluíam muitas coisas: melhor salário, melhores condições de trabalho, assistência médica extensiva a familiares. Obs.: O aposto enumerativo é antecedido por dois-pontos.

    III - resumitivo ou recapitulativo: Glória, poder, dinheiro, tudo passa. Obs.: O sujeito composto “glória, dinheiro, poder” é resumido pelo pronome indefinido tudo. É termo também antecedido de vírgula.

    IV - especificativo ou apelativo: O compositor Chico Buarque é também um excelente escritor. O estado é cortado pelo rio São Francisco. O aposto especificativo, que não pede sinais de pontuação, indica o nome de alguém ou algo dito anteriormente.

    Observação: O aposto também pode se referir a uma oração: Esforcei-me bastante, o que causou muita alegria em todos. Obs.: Palavras como o, coisa, fato etc. podem referir-se a toda uma oração.

  • Por que não pode ser a alternativa A??

  • creio que pra tentar achar a questão do aposto, pode tentar deslocar o termo (mas n sei se funciona pra todas) e se ao deslocar perder um pouco de sentido é porq faz função de aposto...

    tente deslocar "menino de dez anos" q faz referência a "um deles" fica estranho.

    Agora, na letra E, se deslocar "parados" não perde o sentido, mas pode gerar ambiguidade, por esse motivo "parados" foi deslocado (creio eu).

    Ayrton Senna, piloto de fórmula 1, era bem conhecido.

    Ayrton Senna era bem conhecido piloto de fórmula 1.

  • Por que não pode ser a alternativa A??

  • Não pode ser a alternativa A por que é um advérbio de tempo

  • a) "Quinta-feira à tarde, pouco mais de três horas, vi uma coisa tão interessante, que determinei logo de começar por ela esta crônica."

    Errada, aqui se trata de um adj adverbial de tempo

    b) "Os ossos furavam-lhe a pele, os olhos meio mortos fechavam-se de quando em quando."

    Errada, Aqui tem vírgula porque ele foi deslocado mas não se trata de um aposto

    c) "O burr& não comeu do capim, nem bebeu da água; estava já para outros capms e outras águas, em campos mais largos e eternos."

    Errada, perceba que ele não fez nenhuma coisa nem outra isso se caracteriza por ser uma conjunção aditiva ele nem comeu capim e nem bebeu água, caso você não lembra se perceba que não dá ideia de explicação por tanto não se trata de aposto

    d) "Um deles, menino de dez anos, empunhava uma vara, e se não sentia o desejo de dar com ela na anca do burr# para espertá-lo [... ]"

    Correta, perceba que eu tou especificando quem era um deles que no caso é o menino de dez anos portanto isso sim caracteriza um aposto, portanto letra D

    e) "Dois meninos, parados, contemplavam o cadáver [... ]"

    Errada, parados é o modo de como eles estavam portanto adj adv de modo

  • Aposto é um termo que se junta a outro de valor substantivo ou pronominal para explicá-lo ou especificá-lo melhor. Vem separado dos demais termos da oração por vírgula, dois-pontos ou travessão.

    Por Exemplo:

    Ontem, segunda-feira, passei o dia com dor de cabeça.

    Segunda-feira é aposto do adjunto adverbial de tempo ontem. Dizemos que o aposto é sintaticamente equivalente ao termo a que se relaciona porque poderia substituí-lo. Veja:

    Segunda-feira passei o dia com dor de cabeça.

  • Para quem está na dúvida, a alternativa E Parados não é advérbio de modo e sim predicativo do sujeito, pois advérbio só funciona para(verbo, adjetivo e advérbio) no caso ali é um substantivo." dois meninos parados contemplavam o cadaver( eles estavam parados e contemplavam o cadaver).