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ID
2992354
Banca
IF-TO
Órgão
IF-TO
Ano
2019
Provas
Disciplina
Português
Assuntos

Texto 1

Como ler os clássicos? 


§ 1º Em recente artigo para o jornal The New York Times, o novelista Brian Morton compara a leitura dos grandes escritores do passado a uma viagem no tempo, na qual o aventureiro deve mover-se com cautela, sem jamais tentar impor os seus costumes aos nativos de um longínquo período da história, cujas práticas não correspondem às nossas.

§ 2º Segundo o autor, isso não quer dizer que escritores antigos estejam imunes à crítica contemporânea, como se a autoridade do cânone em relação à crítica seguisse um critério de mérito por antiguidade, a partir do qual um texto deva ser protegido a qualquer custo — pelo simples fato de ter sobrevivido às mais diversas provas de resistência ao tempo.

§ 3º Ora, por mais antigo que seja, nenhum texto está isento de reinterpretações e críticas. Exemplo disso é o que nos propõe o estudioso Harold Bloom em “O Livro de J”, em que discorre sobre a possibilidade de alguns trechos do Pentateuco (os cinco primeiros livros da Bíblia) terem sido compostos por uma mulher.

§ 4º Assim, Morton recomenda que a crítica não se antecipe ao bom exercício da leitura. Algo raro nos dias de hoje, em que muitas vezes se opta por boicotar certas obras antes mesmo de confrontá-las por méritos artísticos específicos e prováveis limitações de fundo ético. Exemplo disso são seus estudantes que evitam a leitura de Edith Wharton (autora de “A Casa da Alegria”) e Dostoiévski, sob o pretexto de que qualquer suspeita de antissemitismo deveria ser banida da literatura.

§ 5º Ao referir-se a esse problema, Morton argumenta que, embora a crescente oposição dos estudantes seja alimentada por uma genuína sede de justiça social, a sobrevivência dos clássicos em departamentos de literatura não seria motivada pela pulsão reacionária de velhos professores, mas pela necessidade de compreendermos o terreno em que a criatividade humana se manifesta em um dado contexto histórico e cultural.

§ 6º Não há dúvidas de que as grandes vozes literárias do passado tenham uma visão de mundo limitada por preconceitos de época. Dessa queixa nem mesmo o mais precavido dos nossos contemporâneos conseguiria se safar! Afinal, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche já declarava ser inevitável que todos os grandes espíritos estivessem ligados aos seus tempos por meio de algum preconceito.

§ 7º Mesmo assim, Morton ressalta que ainda temos muito a ganhar com a cuidadosa leitura desses textos que hoje são tidos por controversos. Segundo o autor, esse ganho se traduziria em um exercício de humildade a partir do qual o exame de um passado literário nos tornaria capazes de refletir sobre as limitações das práticas artísticas e dos costumes morais da nossa própria época.

§ 8º Em um diálogo de 2017 com o psicólogo Jordan Peterson, Camille Paglia faz uma observação complementar ao ressaltar que um texto não resiste ao tempo por imposição de uma elite cultural, mas por meio do seu constante uso pela tradição, enquanto referência à prática literária corrente. Ou seja, aquilo que nós consideramos grande arte é determinado pelas necessidades dos próprios artistas.

§ 9º Ao adotar-se o raciocínio de Paglia, chega-se à conclusão de que a permanência de autores como Homero e Shakespeare no cânone literário não seria consequência de uma conspiração do poder político e acadêmico para privilegiar determinados escritores em detrimento de outros. Isso decorre, portanto, da vitalidade das suas influências ao longo da história.

§ 10. Homero é um dos autores mais relevantes do cânone pelo fato de suas criações servirem de inspiração para escritores outros de épocas diversas. Desde os dramaturgos da antiga Grécia — como Ésquilo, que disse que suas peças não passavam de migalhas do banquete homérico — e Virgílio, o romano, até escritores modernos como o poeta e historiador britânico Robert Graves, autor de “A Filha de Homero”, e a escritora canadense Margaret Atwood com o seu “The Penelopiad”.

§ 11. Da mesma forma, Shakespeare teria influenciado outros escritores desde o seu advento, passando pelo teatro alemão do século 18 — por exemplo, tragédias históricas como “Götz von Berlichingen” e “Egmont” de Goethe — até o cinema japonês do século 20, em filmes do diretor Akira Kurosawa — tanto “Trono Manchado de Sangue” como “Ran”, cujos roteiros são adaptações dos dramas “Macbeth” e “Rei Lear”.

§ 12. Compreender essa teia de influências e associações é uma das tarefas mais difíceis do professor e crítico literário, cuja função mais ampla é a de oferecer ao público uma chave de leitura que seja simultaneamente plausível e criativa, sem que para isso tenha a necessidade de extrapolar os limites de uma obra — ora atribuindo ao texto características inexistentes, ora interpretações anacrônicas —, como se a própria obra e o seu contexto histórico não fossem capazes de despertar a fome literária do leitor.

§ 13. Desde o começo do meu doutorado, reflito sobre a melhor forma de ler e ensinar os clássicos da literatura alemã. Assim, durante o período em que me dedico aos alunos, como nas horas em que desenvolvo a minha tese, busco aplicar uma síntese das duas estratégias abordadas neste pequeno ensaio, quais sejam: a reconstrução de um contexto histórico específico na tentativa de emprestar uma ordem ao emaranhado de influências artísticas e filosóficas necessárias para o entendimento de autores como Goethe.

§ 14. Nesse afã, dedico a maior parte das minhas horas de estudo à versão de Goethe de “Ifigênia em Táuris”. Exercício em que procuro entender o contexto histórico de cada uma das versões dessa tragédia, ao mesmo tempo em que traço uma narrativa mais ampla sobre a recepção do texto original de Eurípides na Alemanha do século 18.

§ 15. Contudo, atento aos detalhes da versão de Goethe, que se distancia tanto do texto euripidiano como de outras versões da época, buscando ressaltar as qualidades morais atribuídas à protagonista, cujas atitudes revelam um importante questionamento sobre a relação entre gênero e autonomia na obra do escritor alemão.

§ 16. Goethe é um dos muitos autores clássicos arbitrariamente criticados pelas suas representações do feminino. No entanto, quanto mais tempo dedico ao estudo da sua obra, mais noto que determinadas críticas não fazem o menor sentido.

§ 17. Isso prova que, muitas vezes, a reputação de um escritor canônico entre os nossos contemporâneos apenas revela a inabilidade de nossa época em reconhecer os raros, porém eficientes, esforços do passado na promoção das liberdades que hoje consagramos.

§ 18. Não se trata de uma simples coincidência que Goethe tenha sido uma importante referência literária para a escritora George Eliot, autora de “Middlemarch”, ou que Elena Ferrante, na atualidade, tome uma citação de “Fausto” como a epígrafe de “A Amiga Genial”, o primeiro dos quatro volumes da ilustre série napolitana — uma espécie de “bildungsroman” (romance de formação ou amadurecimento) para os nossos tempos, sobre a busca de duas amigas por autoconhecimento e liberdade!

                             ALBURQUEQUE, Juliana de. Folha de S. Paulo, 26 mar. 2019. 

Com relação aos aspectos linguísticos do texto 1, assinale a assertiva correta:

Alternativas
Comentários
  • GABARITO A

     

    A.  CORRRETO.

     

    B.  ERRADO. Minha opinião: a substituição é possível, pois onde é usado com antecedente locativo real ou virtual. Porém, a troca gera alteração de sentido, já que na qual retoma a palavra viagem e onde, tempo. O texto nos informa que o aventureiro deve mover-se com cautela  na viagem no tempo e não apenas no tempo

     

     C.  ERRADO. O pronome não pode ser posposto ao verbo, pois desrespeita a regra gramatical: o pronome relativo que na frase é fator de próclise. 

     

    D. ERRADO. A crase antes de pronomes possessivos adjetivos femininos é opcional. 


     E. ERRADO. Cujo nunca vem precedido ou seguido de artigo.

     

    Bons estudos!

  • Não consegui enxergar o termo "nossas" como pronome possessivo adjetivo e sim como substantivo, o que levaria ao uso obrigatório da crase.

  • jhonnatan oliveira

    [...] cujas práticas não correspondem às nossas [práticas]. -> Pronome adjetivo

    ou

    [...] cujas práticas não correspondem às nossas. -> pronome substantivo

    Independente de ambas, a questão continuaria errada porque afirma ser imprescindível o artigo antes de pronomes possessivos (generalizou, o que não é verdade).

    Espero ter ajudado, abraços.

  • O sinal indicativo de crase antes de pronome possessivo no SINGULAR é facultativo, mas no PLURAL é obrigatório.

    A crase antes de pronome possessivo é facultativa.

    Sinal indicativo de crase é diferente de crase.

    Quem quiser entender melhor o assunto, basta procurar as aulas do Fernando Pestana...

  • o que o comando da letra A disse? que eu não entendi

  • GABARITO A.

  • Explicação do porque não é a letra c:

    Utiliza-se próclise ,sempre, nos casos onde há: Pronome demonstrativo,indefinido e relativo.

    -->  que distancia-se tanto do texto euripidiano como de outras versões da época (...)”.

    -->  que se distancia tanto do texto euripidiano como de outras versões da época (...)”.

    próclise: posicionamento do pronome antes do verbo; nesse caso, a partícula 'se".

  • Show, 10 minutos fazendo mas deu certo.

  • Muito obrigado Breno Menezes, não estava olhando pelo questão do uso ou não do artigo. Boa questão e boa explicação também.

  • Cara, esta questão era para ser anulada, pois temos 3 acertivas certas.

    A) Está correta e é indiscutível

    B) O Pronome Relativo "onde" pode ser trocado por "no qual" ou "em que" e sua torca não acarretaria mudança de sentido

    D) Está certíssima, pois o PRONOME POSSESSIVO FEMININO NO SINGULAR, a crase é facultativa, mas o PRONOME POSSESSIVO FEMININO NO PLURAL, a crase é OBRIGATÓRIA.

    Cada erro grotesco que chega até a ser uma injustiça com quem estuda de verdade, questão não é passível de anulação. Ela SERÁ ANULADA.

  • Discordo do gabarito, pois o sinal indicativo de crase antes de pronome possessivo no SINGULAR é facultativo, mas no PLURAL é obrigatório.

  • Nunca ouvi falar sobre essa regra de crase obrigatória antes de pronome possessivo feminino plural. Aprendi que crase é facultativa antes de pronome possessivo feminino, seja plural ou singular.

  • Creio que o erro da "D" é dizer que o sinal indicativo de crase é obrigatório pelo fato de ser indispensável o emprego do artigo a(s) antes de pronomes possessivos, sendo que regra fala de Plural ou Singular para a inserção de sinal indicativo de crase ou não.

  • No trecho “cujas práticas não correspondem às nossas” (§ 1º), o sinal indicativo de crase é obrigatório, haja vista ser indispensável o emprego do artigo a(s) antes de pronomes possessivos.

    A questão generalizou dizendo que é obrigatório CRASE antes de pronomes possessivos, não citando se estes estariam no singular ou plural, portanto, errada.

  • Concordo com Breno Menezes.

    Na letra D, "a questão continuaria errada porque afirma ser imprescindível o artigo antes de pronomes possessivos (generalizou, o que não é verdade)".

    Acrescetando: teria q especificar. Nesse caso, "pronomes possessivos femininos no plural" regidos pela preposição "a" mais artigo no plural (as), a crase realmente é obrigatória. Mas como generalizou para todos os pronomes possessivos, não podemos afirmar essa obrigatoriedade.

     

    E mais: sabemos que têm situações em que o mesmo pronome possessivo feminino no plural não admite artigo (logo, não há crase), admite e ainda pode ou não admitir. Por exemplo (pronomes possessivos femininos regidos pela preposição a):

    1. Compareci a/à sua aula. (tudo singular - artigo "a" e pronome: crase facultativa)

    2. Compareci a suas aulas. (sem artigo, só tem preposição a e pronome no plural. singular -> plural = crase faz mal)

    3. Compareci às suas aulas. (tudo plural - artigo "as" e pronome: crase obrigatória)

    Conclusão: a letra D, embora sendo caso de crase obrigatória, a justificativa casou o erro, por afirmar que pronomes possessivos (todos) admitem artigo. Mas nem sempre é assim, como no exemplo 2.

    Espero ter ajudado. Qualquer erro, por favor, é só avisar. Obrigada. Bons estudos a todos. 

  • A palavra onde, como pronome relativo, somente pode ser utilizada para substituir um substantivo que exprima a ideia de lugar. Para a substituição de outros substantivos, utilize as formas "em que", "na qual" ou "no qual" em vez de "onde".